“O Espírito de Deus
inspira, anima, orienta, consola, mas não toma as ferramentas das mãos da
humanidade para resolver, em um passe de mágica, as dores e os problemas que
essa própria humanidade está passando.
O caos que se apossou do Brasil com a chegada do coronavírus
apresenta várias dimensões: sanitária, política, ideológica, econômica. No
entanto, há igualmente uma outra dimensão, que eu chamaria aqui de caos do
discurso pseudocientífico – em boa parte artificialmente produzido.
Enquanto os cientistas – médicos, pesquisadores,
sanitaristas, técnicos em saúde – explicam à população como se porta a doença,
quais as medidas necessárias para combatê-la, outras vozes parecem interferir
no processo dessa comunicação adotando uma linguagem que instaura a confusão.
A ciência é um dos motores do desenvolvimento da humanidade e
da vida. Seu progresso tem sido responsável por grandes melhorias na vida
humana, sobretudo no decurso do último século, ainda que os frutos desse
progresso não tenham sido repartidos equitativamente pelo mundo. Por outro
lado, o mau uso que muitas vezes é feito dos conhecimentos científicos foi, no
mesmo século passado, causa das piores provações pelas quais a humanidade teve
que passar. Por isso, ainda que o progresso da ciência que a racionalidade
moderna possibilitou seja altamente positivo; ainda que se considere correta a
afirmação de que a ciência é o motor do desenvolvimento em todas as frentes; os
esforços feitos por muitos países e regiões do globo no domínio científico
ainda permanecem muito aquém de um mínimo julgado desejável. E boa parte das
razões para tal é a manipulação que interesses econômicos, políticos e
ideológicos fazem contra a objetividade e a excelência que deve caracterizar
toda ciência.
No momento em que explodiu a pandemia viral, a ciência – a
medicina, a biologia, a infectologia e todas as áreas científicas que tratam da
vida – ocuparam a linha de frente das atenções. Buscaram-se orientações,
explicações, argumentos lógicos que ajudassem a administrar a tragédia que
vivíamos.
Por outro lado, competições ideológicas e embates políticos,
muitas vezes se atravessaram no caminho do trabalho científico. E isso
aconteceu por diversas formas: seja a do obscurantismo, que ataca retoricamente
a liberdade de pesquisa científica, seja com políticas públicas retrógradas que
cortam verbas e esvaziam institutos e laboratórios de pesquisa. Em um momento
em que a crise ecológica atinge proporções nunca antes vistas, os impactos
climáticos são minimizados, e os alertas emitidos pela comunidade científica
desprezados como se não fossem evidências objetivas e sim opiniões casuais e
não fundamentadas.
Com o Covid-19 a ciência voltou a ocupar seu papel de
baluarte da verdade objetiva e verificável. Tornou-se um refúgio firme para uma
sociedade assustada e vulnerabilizada pelo avanço descontrolado da doença e a
subida dos números de vítimas fatais. A ciência é, hoje, a linha de frente no
combate à pandemia. Fornece à população números, informações, percentagens que
permitem ter um quadro do que se passa. E podem ser vistos ao mesmo tempo
inúmeros laboratórios empenhados em encontrar remédios que tratem a doença
causada pelo vírus, sequenciando o genoma do vírus em tempo recorde, buscando
pelos caminhos da pesquisa apaixonada e responsável uma vacina.
Há, no entanto, tentativas de travar esse trabalho, muitas
delas invocando o nome de Deus. Contestam-se os dados fornecidos pela ciência,
contradizem-se informações precisas e objetivas e se dão orientações
conflitantes à população. Afirma-se que Deus salvará a todos do vírus, que o
que os cientistas dizem é um exagero, e que o que há que fazer é orar porque
Deus nos salvará do vírus.
Desde sempre, em todas as religiões, mas muito concretamente
nas religiões monoteístas e mais especificamente no judeu-cristianismo, Deus
não se imiscui nos negócios humanos para interferir na ação da própria
humanidade na resolução de seus problemas. O Espírito de Deus inspira, anima,
orienta, consola, mas não toma as ferramentas das mãos da humanidade para
resolver, em um passe de mágica, as dores e os problemas que essa própria
humanidade está passando.
Toda tentativa ao longo da história de converter Deus em
árbitro da ciência, impedindo-a de avançar, já foi suficientemente desmascarada
e situada em seu devido lugar: é falsidade e embuste. Assim, governantes
despóticos e irresponsáveis que buscam desautorizar os cientistas que dizem a
verdade em meio a um momento grave como o que estamos vivendo terão que
responder diante do tribunal da história. E também diante do tribunal divino,
que fará cair os véus, desvelando suas tentativas de vendar os olhos do povo
com ilusões e falácias, na sua mais atualizada forma: as fake news.
Em meio à pandemia, a comunidade científica tem construído
uma rede sólida de informações, colocando a ciência na vanguarda das políticas
de combate à pandemia. Assim, se pode combater o obscurantismo
institucionalmente, usando de transparência e honestidade, atualizando
constantemente as medidas adotadas e procurando adequar as condições da saúde
às reais necessidades decorrentes da própria pandemia. E a fé não pode estar
ausente dessa rede e desse diálogo.
Falar de Deus em tempos de coronavírus implica dialogar com a
ciência e deixar-lhe plena autonomia no campo e competência que lhe é própria.
Não misturar epistemologias ou querer tratar o que releva do campo do biológico
com instrumentos falsamente espirituais que matam em vez de curar e alimentam
políticas genocidas, empurrando as pessoas para o contágio e muito
provavelmente para a morte.
Maria Clara Bingemer é
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho
em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.
FONTE:
MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER, redacao@jb.com.br
Jornal do Brasil - https://www.jb.com.br/pais/artigo/2020/05/1023874-o-necessario-dialogo-entre-a-fe-e-a-ciencia.html
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