4º DOMINGO DO TEMPO COMUM: Mateus 5, 1-12
“Feliz
o homem cujo prazer está na lei de Javé, meditando-a dia e noite” (cf. Sl
1,1a.2). A tradição judaica afirmava que a felicidade consistia na meditação e
observância da lei. No sermão da montanha (Mt 5–7), porém, Jesus vai além e
apresenta uma “justiça que exceda” o legalismo de escribas e fariseus” (cf. Mt
6,20). Esta “lei maior”, sim, gera felicidade (Mt 5,3-12).
1. Todas as pessoas são chamadas à
santidade
Na boa nova das bem-aventuranças, Jesus
propõe um caminho de santidade para quem o segue pelo caminho em todos os
tempos. Portanto, Jesus propõe para nós hoje esse mesmo projeto. Conforme a
comunidade de Mateus, as bem-aventuranças são as orientações para seguir seguro
pelo caminho de Deus.
Todas as pessoas são chamadas à
santidade, a fim de serem felizes. “Sede santos, porque eu, Javé vosso Deus,
sou santo” (Lv 19,2). Mateus faria uma releitura desse chamado da seguinte
forma: “Sede íntegros, como o Pai celeste é íntegro” (Mt 5,48). Coerente com
sua experiência com o Deus compassivo, Lucas formula assim o mesmo convite:
“Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
2. Jesus, o novo mestre da justiça, nos
ensina o caminho da santidade
Quando Mateus apresenta Jesus fazendo
cinco grandes discursos (Mt 5–7; 10; 13,1-52; 18; 24–25), sua intenção é
apresentá-lo como o novo Moisés, a quem eram atribuídos os cinco livros da lei,
o Pentateuco. Tal como Moisés recebera de Deus as palavras da lei
encontrando-se sobre um monte, Jesus dá as novas orientações de Deus também
numa montanha (Ex 18,1-2.20; 20,1-17; Mt 5,1; 8,1).
Como vimos acima, a prática da vontade
de Deus, expressa em sua lei, era considerada o caminho da felicidade.
No tempo de Jesus, muitos fariseus
estavam preocupados em viver as leis do Pentateuco em todos os seus pormenores.
Jesus, porém, vive e anuncia essa vontade de Deus indo além da letra da lei.
Diz que, mais que a letra que pode matar, é o espírito da lei que importa, pois
promove vida (cf. 2Cor 3,6). Disse ainda que o espírito da lei consiste na
vivência do amor a Deus e ao próximo como a si mesmo (Mt 22,34-40) ou em amar
como Jesus nos amou (Jo 13,34). Assim, o amor misericordioso passa a ser a
orientação fundamental para o nosso agir (cf. Mt 12,1-8). Mateus chama essa
vontade de Deus de justiça do Reino (cf. Mt 6,33). Se Moisés era o antigo
mestre da lei, Jesus é o novo mestre da justiça a nos ensinar o caminho de
Deus, o caminho da santidade no amor.
3. Bem-aventuranças: a porta de entrada
ao sermão da montanha
No discurso do sermão da montanha, o
mestre da justiça ensina um conjunto de orientações para a boa convivência na
comunidade, chamada a viver as relações do Reino.
As bem-aventuranças são a porta de
entrada ao sermão da montanha. Elas são um programa de vida para trazer
felicidade plena a quem adere à boa nova de Jesus. São orientações para seguir
no caminho da misericórdia. A felicidade já não está em somente meditar a lei
de Javé dia e noite, mas felizes são as pessoas pobres no Espírito, as que têm
fome e sede de justiça, as que são misericordiosas…
4. Bem-aventuranças: as atitudes no
caminho de santidade
A justiça do Reino dos Céus, isto é, a
vontade de Deus, é o carro-chefe das bem-aventuranças. Convém lembrar que, em
Mateus, “Céus” é sinônimo de “Deus” (cf. Lc 6,20). É importante que tenhamos
isso presente para superarmos a tentação de transferir o Reino para depois da
morte. O que Jesus de Nazaré quer é que “seja realizada na terra a vontade do
Pai, como já é realizada nos Céus” (Mt 6,10). Seu projeto do Reino é para esta
vida, que é eterna. Ele não diz que as pessoas pobres “serão” felizes. Porém,
afirma: porque delas “é” o Reino dos Céus (Mt 5,3.10). E, ao anunciar a
plataforma do Pai, Jesus diz que o Reino está próximo. Estar perto no sentido
temporal quer dizer que é para breve e não para um futuro distante. Ao mesmo
tempo, o Reino está perto no sentido espacial, isto é, ele já está presente
entre nós na vida de Jesus, de um lado, e, de outro, em todos os gestos de
misericórdia, de paz e de justiça. E se o Reino de Deus está próximo, próximo
também está o fim dos reinos da mentira e do ódio, da intolerância e da
violência.
O Reino é o projeto na primeira e na
oitava bem-aventurança (Mt 5,3.10). E, no centro, estão a busca da justiça (do
projeto do Reino) e a busca da misericórdia (ter o coração voltado para quem
está na miséria). Uma vez realizada a justiça de Deus, os empobrecidos deixarão
de ser oprimidos, pois haverá partilha e solidariedade (cf. Mt 6,33). Por isso,
diferentemente da teologia da retribuição que afirmava que os pobres eram
malditos por Deus, Jesus os declara benditos.
5. Felizes os pobres no Espírito
A primeira bem-aventurança é a mais
importante (Mt 5,3). As demais são desdobramentos desta. Qual é a porta de
entrada para o Reino? Quem são os pobres no Espírito? São aquelas pessoas
nomeadas nas duas bem-aventuranças seguintes, ou seja, as que choram, as que
são humildes e não têm terra (Mt 5,4-5; cf. Sl 37,11). Na quarta, Jesus convoca
esses pobres no Espírito para a luta por justiça (Mt 5,6). Nas três seguintes,
Jesus diz quais são as atitudes necessárias na vivência da justiça: a
misericórdia, a pureza de coração e a promoção da paz (Mt 5,7-9). Por fim,
anuncia as consequências para que adere ao projeto da justiça: perseguição,
injúria e calúnia da parte dos opositores do projeto do Reino (Mt 5,10-12).
Observemos que tanto em relação aos pobres no Espírito (primeira
bem-aventurança), como aos perseguidos por causa da justiça (oitava), fala-se
do mesmo prêmio: deles já é o Reino dos Céus (verbo no presente). Trata-se do
mesmo grupo de pessoas. Pobre no Espírito é quem se deixa guiar pelo Espírito
de Deus.
E quais são as dádivas para esses
empobrecidos ou para quem com eles é solidário? Jesus anima a sua esperança
anunciando-lhes o Reino para o tempo presente. Não é difícil para nós hoje perceber
quem é pobre e quem com ele é solidário. É só ver as perseguições que sofrem
injustamente, tais como calúnias, mentiras, condenações sem crime,
intolerâncias e violências.
E quais são os frutos de quem vive,
movido pelo Espírito de Deus, as orientações do caminho do Reino? São o
consolo, a terra repartida, fartura, misericórdia, contemplação de Deus e
filiação divina. E ser filha e filho de Deus é agir à sua imagem e semelhança,
isto é, ter as mesmas atitudes de Deus. É viver como irmãs e irmãos (Mt 23,8-9).
É “amar os inimigos e orar pelos que nos perseguem” (Mt 5,44-45).
6. É suficiente ser pobre?
Não. Ser pobre não é suficiente. Está
evidente que as pessoas empobrecidas são as preferidas de Deus, justamente
porque ele não pode ver ninguém passando por necessidades em sua família. Ainda
mais, quando a pobreza é fruto da injustiça humana. A preferência de Deus é sua
misericórdia para com quem sofre violência. É interessante notar que esta mesma
bem-aventurança, no Evangelho segundo Lucas, reza assim: “Felizes vós, os
pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20).
Quando a comunidade de Mateus
acrescentou “no Espírito” à primeira bem-aventurança de Jesus, também estava
preocupada com o fato de que há pobres que têm corações e mentes possessos pelo
espírito de rico, de ódio, de intolerância de classe, de gênero, de mentira,
vivendo em um mundo paralelo. Buscam o sentido mais profundo para a vida na
riqueza, no prestígio, na violência, na arrogância e no poder. Por isso, Mateus
quis deixar bem demarcado que não basta ser pobre, mas que é preciso ser “pobre
no Espírito”, isto é, viver de acordo com o Espírito do próprio Deus. Ser pobre
também por dentro, interiormente. Ser amante da verdade, do respeito à
diversidade, sem preconceito contra pessoas pobres, negras ou indígenas,
mulheres ou da diversidade sexual.
É provável que a comunidade de Mateus,
ao acrescentar na parábola do banquete a presença de um homem sem a veste
nupcial (Mt 22,1-14; cf. Lc 14,16-24), queira justamente referir-se à
necessidade de também ser pobre no Espírito, ou seja, livre de tudo que escraviza
e vestir a veste do amor e da misericórdia de Deus revelada em Jesus. Ser pobre
no Espírito também é a opção pelo projeto da justiça e da misericórdia, é viver
na total confiança e dependência de Deus, é confiar na partilha, na vida
simples e na irmandade.
Aliás, são justamente as pessoas que
buscam a felicidade no consumismo, na acumulação e no individualismo que
perseguem quem luta pela justiça do Reino, pela paz e pela partilha. Foi assim
que, no passado, os poderosos perseguiram os profetas (Mt 5,10-12) e, ainda
hoje, caluniam e perseguem quem luta por um Brasil em que também as pessoas
excluídas possam fazer, pelo menos, três refeições ao dia, ter casa,
atendimento médico digno, educação de qualidade etc.
7. A felicidade do “reino da riqueza” e
a felicidade do “Reino de Deus”
Faz alguns anos, o padre Renzo Flório,
celebrando conosco na comunidade São Judas Tadeu, em São Leopoldo, confrontou
as bem-aventuranças com as promessas de felicidade da sociedade consumista. Em
sua reflexão, Flório dizia mais ou menos o que segue.
Enquanto a ideologia capitalista
declara felizes os que acumulam, Jesus anuncia a bem-aventurança para os pobres
no Espírito, para as pessoas totalmente livres e desapegadas de qualquer
riqueza idolatrada.
O projeto mundano proclama feliz quem
vive em festanças, ao passo que Jesus afirma que bem-aventuradas são as pessoas
que agora choram, incluindo as que choram por compaixão, uma vez que irão
superar seus sofrimentos.
Para o sistema do capital, felizes são
os donos de grandes extensões de terra. Para Jesus, no entanto, abençoado é
quem é pobre, quem não têm terra, pois irá conquistá-la para nela viver e
trabalhar.
Enquanto a mentalidade do projeto deste
mundo diz que são felizes as pessoas que praticam a injustiça, Jesus atesta que
bendito é quem tem fome e sede de justiça, lutando para que essa fome e essa
sede sejam saciadas.
A mística do capital declara feliz quem
é individualista e voltado somente para seus próprios interesses, ao passo que
Jesus anuncia que bem-aventuradas são as pessoas misericordiosas, solidárias.
Na propaganda de quem defende o poder
financeiro, é feliz quem é desonesto e falso, cínico, debochado e mentiroso.
Para Jesus, porém, é abençoado quem é puro de coração, as pessoas
transparentes, sinceras, honestas, autênticas.
O sistema deste mundo proclama felizes
os que alcançam o que querem através da violência e da guerra. Jesus afirma que
bendito é quem promove a paz.
Por fim, os poderosos dizem que feliz é
quem calunia, condena e persegue aqueles que lutam por vida digna para todos.
Jesus, contudo, declara feliz quem é perseguido por causa de seu engajamento na
luta pela justiça.
Hoje, Jesus renova o convite para nós:
“Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas
vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6,33). E o caminho da justiça do Reino, o
caminho da santidade, está na prática, não da letra da lei, mas do espírito da
lei proposto nas orientações fundamentais para a vida, e que Jesus sintetiza
nas bem-aventuranças. É um projeto que abrange a vida toda, envolvendo as
relações com os bens, com as pessoas, conosco mesmos e com Deus.
Texto:Ildo Bohn Gass
Fonte: cebi.org.br