Consumir por consumir sai de moda, morar perto do trabalho,
atuar mais no coletivo com colegas de empresas, ou vizinhos do bairro. A
Covid-19 vai rever valores e mudar hábitos da sociedade.
DEZ TENDÊNCIAS PARA O MUNDO PÓS-PANDEMIA
A Covid-19 mudou nossas vidas. Não estou falando
aqui simplesmente da alteração da rotina nesses dias de isolamento, em que não
podemos mais fazer caminhadas no parque ou ir aos nossos bares e restaurantes
preferidos. Sim, tudo isso mudou nosso cotidiano – e muito! Mas o meu convite
para você é para pensarmos nas mudanças mais profundas, naquelas transformações
que devem moldar a realidade à nossa volta e, claro, as nossas vidas depois que
o novo baixar a bola. Por isso talvez seja melhor mudar o tempo verbal da frase
que abre este texto e dizer que o corona vírus vai mudar as nossas
vidas. Mas como? Que cenários prováveis já começam a emergir e devem se impor no
mundo pós-pandemia?
O mundo pós-pandemia será diferente
Entender que mundo novo é esse é importante para nos
prepararmos para o que vem por aí. Porque uma coisa é certa: o mundo não será
como antes, conforme nos alertou o biólogo Átila Iamarino.
“O mundo mudou, e aquele mundo (de antes do corona vírus) não
existe mais. A nossa vida vai mudar muito daqui para a frente, e alguém que
tenta manter o status quo de 2019 é alguém que ainda não aceitou essa
nova realidade”,
disse nesta entrevista para a BBC Brasil. Átila, que é doutor em
microbiologia pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pela Universidade
Yale. “Mudanças que o mundo levaria décadas para passar, que a gente levaria
muito tempo para implementar voluntariamente, a gente está tendo que
implementar no susto, em questão de meses", diz ele.
Pandemia marca o fim do século 20
Ainda nessa linha, havia uma visão entre especialistas de que
faltava um símbolo para o fim do século 20, uma época altamente marcada pela
tecnologia. E esse marco é a pandemia do corona vírus, segundo a historiadora e
antropóloga Lilia Schwaecz, professora da Universidade de São Paulo e de
Princeton, nos EUA, em entrevista ao Universa. “[O historiador britânico
Eric] Hobsbawm disse que o longo século 19 só terminou depois da 1ª Guerra
Mundial [1914-1918]. Nós usamos o marcador de tempo: virou o século, tudo
mudou. Mas não funciona assim, a experiência humana é que constrói o tempo. Ele
tem razão, o longo século 19 terminou com a Primeira Guerra, com mortes, com a
experiência do luto, mas também o que significou sobre a capacidade destrutiva.
Acho que essa nossa pandemia marca o final do século 20, que foi o século da
tecnologia. Nós tivemos um grande desenvolvimento tecnológico, mas agora a
pandemia mostra esses limites”, diz Lilia.
Corona vírus, um acelerador de futuros
Vários futuristas internacionais dizem que o corona vírus
funciona como um acelerador de futuros. A pandemia antecipa mudanças que já
estavam em curso, como o trabalho remoto, a educação a distância, a busca por
sustentabilidade e a cobrança, por parte da sociedade, para que as empresas sejam
mais responsáveis do ponto de vista social.
Outras mudanças estavam mais embrionárias e talvez não fossem
tão perceptíveis ainda, mas agora ganham novo sentido diante da revisão de
valores provocada por uma crise sanitária sem precedentes para a nossa
geração. Como exemplos, podemos citar o fortalecimento de valores como
solidariedade e empatia, assim como o questionamento do modelo de sociedade
baseado no consumismo e no lucro a qualquer custo.
“A vida depois do vírus será diferente”, disse ao site
Newsday a futurista Amy Webb, professora da Escola de Negócios da
Universidade de Nova York. “Temos uma escolha a fazer: queremos confrontar
crenças e fazer mudanças significativas para o futuro ou simplesmente preservar
o status quo?”
Efeitos do corona vírus devem durar quase dois anos
As transformações são inúmeras e passam pela política,
economia, modelos de negócios, relações sociais, cultura, psicologia social e a
relação com a cidade e o espaço público, entre outras coisas.
O ponto de partida é ter consciência de que os efeitos da
pandemia devem durar quase dois anos, pois a Organização Mundial de saúde calcula
que sejam necessários pelo menos 18 meses para haver uma vacina contra o vírus.
Isso significa que os países devem alternar períodos de abertura e isolamento
durante esse período.
Diante dessa perspectiva, como ficam as atividades de lazer,
cultura, gastronomia e entretenimento no centro e em toda a cidade durante esse
período? O que mudará depois? São questões ainda em aberto, mas há sinais que
nos permitem algumas reflexões.
Para entender essas e outras questões e identificar os
prováveis cenários, procurei saber que tendências os futuristas, pesquisadores
e bureaus de pesquisas nacionais e internacionais estão traçando para o
mundo pós-pandêmico. A partir dessas leituras e de um olhar para as questões
que dizem respeito ao centro de São Paulo e à vida urbana em geral, fiz uma
lista com algumas dessas tendências, que você pode ler a seguir.
Confira as 10 tendências para o mundo pós-pandemia
1. Revisão de crenças e valores
A crise de saúde pública é definida por alguns pesquisadores
como um reset, uma espécie de divisor de águas capaz de provocar
mudanças profundas no comportamento das pessoas. “Uma crise como essa pode
mudar valores”, diz Pete Lunn, chefe da unidade de pesquisa comportamental
da Trinity College Dublin, em entrevista ao Newaday.
“As crises obrigam as comunidades a se unirem e trabalharem
mais como equipes, seja nos bairros, entre funcionários de empresas, seja o que
for... E isso pode afetar os valores daqueles que vivem nesse período —assim
como ocorre com as gerações que viveram guerras”.
Já estamos começando a ver esses sinais no Brasil - e no
centro de São Paulo, com vários exemplos de pessoas que se unem para ajudar
idosos, por exemplo.
2. Menos é mais
A crise financeira decorrente da pandemia por si só será um
motivo para que as pessoas economizem mais e revejam seus hábitos de consumo.
Como diz o Copenhagen Institute for Futures Studies, a ideia de “menos
é mais” vai guiar os consumidores daqui para frente.
Mas a falta de dinheiro no momento não será o único motivo.
As pessoas devem rever sua relação com o consumo, reforçando um movimento que
já vinha acontecendo. “Consumir por consumir saiu de ‘moda’”, escreve no
site O futuro das Coisa, Sabina Deweik, mestre em comunicação
semiótica pela PUC e pesquisadora de comportamento e tendências.
O outro lado desse processo é um questionamento maior do
modelo de capitalismo baseado pura e simplesmente na maximização dos
lucros para os acionistas. “O Corona vírus trouxe para o contexto dos
negócios e para o contexto pessoal a necessidade de revisitar as prioridades. O
que antes em uma organização gerava resultados financeiros, persuadindo,
incentivando o consumo, aumentando a produção e as vendas, hoje não funciona mais”,
diz Sabina.
“Hoje, faz-se necessário pensar no valor concedido às
pessoas, no impacto ambiental, na geração de um impacto positivo na sociedade
ou no engajamento com uma causa. Faz-se necessário olhar definitivamente com
confiança para os colaboradores já que o home office deixou de ser
uma alternativa para ser uma necessidade. Faz-se necessário repensar a
sociedade do consumo e refletir o que é essencial.”
3. Reconfiguração dos espaços do comércio
A pandemia vai acentuar o medo e a ansiedade das pessoas
e estimular novos hábitos. Assim, os cuidados com a saúde e o bem-estar, que
estarão em alta, devem se estender aos locais públicos, especialmente os
fechados, pois o receio de locais com aglomeração deve permanecer.
“Quando as pessoas voltarem a frequentar espaços públicos,
depois do fim das restrições, as empresas devem investir em estratégias para
engajar os consumidores de modo profundo, criando locais que tragam a eles a
sensação de estar em casa”, diz um relatório da WGSN, um dos maiores bureaus de pesquisas
de tendências do mundo.
Eis um ponto de atenção para bares, restaurantes, cafeterias,
academias e coworkings, que devem redesenhar seus espaços para
reduzir a aglomeração e facilitar o acesso a produtos de higiene, como álcool
em gel. Os espaços compartilhados, como coworkings, têm um grande
desafio nesse novo cenário.
4. Novos modelos de negócios para restaurantes
Uma das dez tendências apontadas pelo futurista Rohit
Bhatgava é o que ele chama de “restaurantes fantasmas”, termo usado para
descrever os estabelecimentos que funcionam só com delivery. Como a
possibilidade de novas ondas da pandemia num futuro próximo, o setor de
restaurantes deve ficar atento a mudanças no seu modelo de negócios, e o
serviço de entrega vai continuar em alta e pode se tornar a principal fonte de
receita em muitos casos.
5. Experiências culturais imersivas
Como resposta ao isolamento social, os artistas e produtores
culturais passaram a apostar em shows e espetáculos online, assim como os tours
virtuais a museus ganharam mais destaque. Esse comportamento deve evoluir
para o que se pode chamar de experiências culturais imersivas, que tentam
conectar o real com o virtual a partir do uso de tecnologias que já estão por
aí, mas que devem se disseminar, como a realidade aumentada e virtual,
assistentes virtuais e máquinas inteligentes.
De acordo com o estudo Hype Cycle, da consultoria
internacional Gartner, as experiências imersivas são uma das três
grandes tendências da tecnologia. Destacamos aqui a área cultural, mas isso
também se estende a outros setores, como esportes, viagens a varejo, conforme
indica o relatório A Post-Corona World, produzido pela Trend Watching,
plataforma global de tendências.
6. Trabalho remoto
O home office já era uma realidade para muita
gente, de freelancers e profissionais liberais a funcionários de
companhias que já adotavam o modelo. Mas essa modalidade vai crescer ainda
mais. Com a pandemia, mais empresas - de diferentes portes - passaram a se
organizar para trabalhar com esse modelo. Além disso, o trabalho remoto evita a
necessidade de estar em espaços com grande aglomeração, como ônibus e metrôs,
especialmente em horários de pico.
7. Morar perto do trabalho
Essa já era uma tendência, e morar no centro de São Paulo se
tornou um objeto de desejo para muitas pessoas justamente por conta disso, entre
outros motivos. Mas, com o receio de novas ondas de contágio, morar perto do
trabalho, a ponto de ir a pé e não usar transporte público, deve se tornar um
ativo ainda mais valorizado.
8. Shopstreaming
Com o isolamento social, as lives explodiram,
principalmente no Instagram. As vendas pela Internet também, passando a ser uma
opção também para lojas que até então se valiam apenas do local físico. Pois
pense na junção das coisas: o shopstreaming é isso. Uma versão
Instagram do antigo ShopTime.
9. Busca por novos conhecimentos
Num mundo em constante e rápida transformação, atualizar seus
conhecimentos é questão de sobrevivência no mercado (além de ser um prazer,
né?). Mas a era de incertezas aberta pela pandemia aguçou esse sentimento nas
pessoas, que passam, nesse primeiro momento, a ter mais contato com cursos
online com o objetivo de aprender coisas novas, se divertir e/ou se preparar
para o mundo pós-pandemia. Afinal, muitos empregos estão sendo fechados,
algumas atividades perdem espaço enquanto outros serviços ganham mercado.
10. Educação a distância
Se a busca por conhecimentos está em alta, o canal para isso
daqui para frente será a educação a distância, cuja expansão vai se acelerar.
Neste contexto, uma nova figura deve entrar em cena: os mentores virtuais.
A Trend Watching aposta que devem surgir novas plataformas ou
serviços que conectam mentores e professores a pessoas que querem aprender
sobre diferentes assuntos.
Clayton Melo - jornalista e analista de tendências do
Jornal El País.