FOTO DE CHARLIE HAMILTON JAMES, NAT GEO IMAGE COLLECTION
BISPOS
DA AMAZÔNIA, EM CARTA, AFIRMAM QUE OS OLHARES AMBICIOSOS SE VOLTAM SOBRE O
BIOMA E LANÇAM SOBRE ELE A DEPREDAÇÃO QUE AMEAÇA A VIDA
A Comissão Episcopal Especial para a Amazônia da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil) divulgam
nesta quarta-feira, 19 de maio, a carta aprovada pelos bispos da Amazônia que
reunidos, de modo on-line, entre os dias 18 e 19 de maio, se dirigirem ao povo
brasileiro diante às ameaças a toda casa comum e, especialmente, ao bioma
amazônico.
No texto, os bispos afirmam que se sentem “sensibilizados pela situação
de vulnerabilidade e ameaças que sofre toda casa comum, agravada pela pandemia
da Covid-19, e pelo acirramento das disputas territoriais com expansão das
atividades minerais e do agronegócio em terras de populações
tradicionais”. Na mensagem, os bispos ressaltam que o cenário político
indigenista vivido no Brasil é de “retrocesso” e que a “crise socioambiental,
denunciada em 2019 durante o Sínodo, acentuou-se durante a pandemia”.
Os bispos fazem, ainda, um apelo às mais variadas lideranças de cristãos
leigos e leigas que “não desaminem da luta” e pedem que a “sensibilidade para
com os mais pobres seja permanente”.
CARTA ABERTA DO ENCONTRO DOS BISPOS DA
AMAZÔNIA LEGAL
Ao povo brasileiro,
“Vi, então, um novo céu e uma nova
terra, morada de Deus com sua gente (…). Nunca mais haverá morte, nem luto, nem
grito, nem dor.
Sim! As coisas antigas passaram! Eis que faço novas todas as
coisas” (cf Ap 21, 1- 5).
“Cristo aponta para Amazônia”.
A convocação de São Paulo VI, que repetidas vezes nos inspirou como
interpelação, se configura agora como profecia: os olhares se voltam para
Amazônia, pela riqueza da sua biodiversidade e de seus povos, e isto nos
alegra; mas também olhares ambiciosos, que lançam sobre a região um avanço de
depredação e ameaça à vida, e isto nos causa indignação. Como Igreja Católica,
também nós, lançamos nosso olhar vigilante, nossa escuta contemplativa e
esperançosa, nosso comprometimento inequívoco; levantamos nossa voz, renovamos
os apelos à ecologia integral, ao cuidado com a casa comum, à proteção e preservação
da região e renovamos nosso empenho como aliados dos povos desta Querida
Amazônia.
Nós, bispos da Amazônia, presbíteros e diáconos, religiosos e
religiosas, cristãos leigos e leigas em profunda sintonia com o Sínodo
Pan-Amazônico, reunidos nos dias 18 e 19 de maio de 2021, desta vez nos
servindo das tecnologias de comunicação, de distantes nos fizemos próximos,
como nos fazemos próximos do nosso povo como uma Igreja que se põe à escuta e
acolhe as culturas e tradições amazônicas, expressão do Espírito de Deus. No
exercício de nossa missão evangelizadora dirigimos esta mensagem a toda
sociedade, aos povos da Amazônia, aos homens e mulheres comprometidos com a
defesa da vida. E o fazemos profundamente sensibilizados pela situação de
vulnerabilidade e ameaças que sofre toda casa comum, agravada pela pandemia da
Covid-19, e pelo acirramento das disputas territoriais com expansão das
atividades minerais e do agronegócio em terras de populações tradicionais. A
consequência desse cenário de morte tem sido as inúmeras e incontáveis vítimas
da pandemia. Chegamos aos quase 440.000 mortos, além dos que sucumbiram diante
de processos de violência no campo e na cidade. Nos solidarizamos com todos os
que tombaram vítimas do descaso e dos projetos de morte. Como o salmista,
reconhecemos a preciosidade da vida de cada homem e de cada mulher que partiu:
“É de alto preço, aos olhos do Senhor, a morte dos seus fiéis” (Sl 116,15).
Nosso olhar vigilante
Acompanhamos estarrecidos, mas não inertes, o desenrolar de um arquitetado
projeto genocida que, por sua vez, revela o devastador agravamento de uma crise
que escancara a pobreza diante da escandalosa concentração de riquezas. Este é
o sinal evidente da perversidade de uma economia de mercado, embasada no
capital especulativo, que se alimenta das necessidades dos estados nacionais,
fazendo destes seus novos consumidores. Assim, o capital sequestra a autonomia
dos Estados, exige e dita os novos rumos da política, rompe com as históricas
conquistas sociais, desmonta as instituições e políticas de seguridade,
alimenta-se das posturas extremistas, que por sua vez buscam na religião sua
legitimidade de expressão. Essa perversidade busca revestir-se de um maquiado
desejo de liberdade e de autonomia diante da lei, derruba os marcos legais que
garantem o equilíbrio das relações e a salvaguarda do bem comum. As lutas das
populações da Amazônia têm diante de si o escandaloso desafio da pretensiosa
legalidade do ilícito. Ou apelamos para a garantia legal da vida e dos
territórios, ou nos defendemos quando o extermínio se torna lei!
Este dinamismo é escancaradamente presente diante da questão das lutas
dos povos indígenas. O cenário político indigenista vivido no Brasil é de
retrocesso, com o agravamento das violações dos direitos destes povos,
principalmente no que se refere à regularização dos seus territórios. Eles
enfrentam invasões de suas terras, incentivadas por estratégias políticas que
favorecem a exploração, por garimpeiros, mineradoras, madeireiros,
desmatadores, agentes do agronegócio, entre tantos outros, gerando toda espécie
de violências e violações de direitos humanos e da natureza. Somam-se os
incêndios, poluição das águas dos rios, contaminação de peixes, contaminação
das pessoas e dos animais; assassinatos, violência sexual, pandemia,
desassistência.
Percebemos, também, que a crise socioambiental, denunciada em 2019
durante o Sínodo, acentuou-se durante a pandemia e revela os limites de um
sistema que está sendo rapidamente destruído e que tende a perecer se a crise
não for detida. Preocupa-nos a cadeia de iniciativas em vista do desmonte e
fragilização da legislação socioambiental e fundiária: O PL 3729/2004 que
desmonta o sistema de licenciamento ambiental; o PL 2633/2020 e PL 510/2021 que
abrem as “porteiras” para a grilagem de terras; o PL 191/2020 permitindo a
mineração e atividades econômicas em terras indígenas; o PL 6299/2002 que
flexibiliza fabricação e uso de agrotóxicos. A profecia não silencia diante
destas práticas: “Ai dos que inventam leis injustas, dos escribas que
referendam a injustiça para oprimirem os pobres no julgamento” (Is 10,1-2).
Enquanto escrevemos estas linhas, populações que há mais de 30 anos
estavam presentes em seu chão, são despejadas no Assentamento Jacutinga em
Porto Nacional – Tocantins, contrariando a recomendação do Conselho Nacional de
Justiça de não executar decisões desse tipo em tempo de pandemia.
Outra série de agressões vão se acumulando neste cenário que não escapa
aos nossos olhos: as ameaças às unidades de conservação, o acirramento da
violência no campo e na cidade, a crise migratória, o feminicídio, a exploração
sexual, o trabalho escravo, o tráfico de pessoas, entre tantos. Como se não
bastassem essas crises provocadas pela intervenção humana, o fenômeno das
enchentes, que pode ser agravado pelas mudanças climáticas, castiga nossas
populações ribeirinhas. De olho nas águas, percebemos uma iminente crise
hídrica como pauta de um próximo embate.
Somos sabedores que os governantes têm o dever constitucional de agir
para evitar a destruição das riquezas naturais e implementar políticas públicas
que amenizem a situação de desigualdade e pobreza, porém, na Amazônia isso não
vem acontecendo. Assistimos um governo que vira as costas a esses clamores,
opta pela militarização em seus quadros, semeia estratégias de criminalização
de lideranças e provoca conflito entre os pequenos. Dói em nossos corações de
pastores as imagens de escárnio e zombaria das dores de nossa gente: “Nossa
alma está farta, em extremo, da zombaria dos satisfeitos e do desprezo dos
soberbos” (Sl 123,4).
Não obstante este cenário, mantemos viva e acesa nossa esperança no
Ressuscitado: “No mundo tereis aflições, mas tende coragem! Eu venci o mundo”.
(Jo 16,33)
Nossa escuta contemplativa e
esperançosa
Aprendemos da experiência do Sínodo da Amazônia um olhar esperançoso. A
Amazônia é também resposta! Ela irrompe como novo sujeito e como novo paradigma
pela questão ecológica e pelos seus povos originários. A partir da Amazônia
fomos desafiados a assumir esses novos paradigmas em nossa ação evangelizadora.
Os caminhos traçados pelo Sínodo da Amazônia, catalogados em forma de
compromisso no novo Pacto das Catacumbas pela Casa Comum, deixaram evidente a
necessidade de superar uma lógica colonizadora, de escolher a periferia como centro
da Igreja, de assumir o caminho da inculturação e interculturalidade, seja no
campo dos ministérios como das estruturas: uma Igreja com o rosto Amazônico.
Constatamos com alegria a atuação de uma infinidade de comunidades
constituídas e milhares de lideranças de cristãos leigos, na sua maioria
mulheres, que atuam no campo da evangelização e educação socioambiental. A
partir dos relatórios dos Regionais da CNBB na Amazônia, verificamos que
estamos a passos lentos, mas progressivos, tornando concretos os caminhos de
conversão propostos no Documento Final do Sínodo e os quatro Sonhos do Papa
Francisco na Exortação Apostólica pós-sinodal Querida Amazônia. Foi justamente
para retomarmos o ardor do Sínodo da Amazônia e apreciar os passos dados que
fomos convocados para este encontro. Perguntamo-nos: “Que mudanças efetivamente
têm ocorrido em nossa ação evangelizadora desde as indicações do Sínodo?”
Nosso comprometimento inequívoco
A Igreja na Amazônia já tem um caminho. Somos uma Igreja que age sob a
força e inspiração do Espírito de Deus. A liberdade e ousadia do Evangelho são
mais fortes que as amarras e os desgastes das estruturas. A conversão pastoral,
desde a Conferência de Aparecida (2007), nos interpela, a conversão integral,
desde o Sínodo da Amazônia, nos inquieta. Somos sabedores dos desafios de
manter a unidade em tempos de conflitos, do nosso papel mediador. Não somos
ingênuos de pautar nosso agir em polarizações agressivas, como insistem até
mesmo alguns que dizem professar a fé em Jesus Cristo, mas não haja dúvidas de
que lado nós estamos: por causa do Evangelho e do Reino reafirmamos nossa
incondicional escolha por estas populações, por estes territórios, por estas vidas
ameaçadas. Em nada nos fascina qualquer aproximação com esses sistemas
perversos, mas também aos que neles se envolvem, anunciamos a Boa Nova de
Jesus: “Cumpriu-se o tempo, e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e
crede no Evangelho” (Mc 1,15)!
Não estamos sozinhos, há outros interlocutores da fé cristã, de outras
expressões religiosas, de organizações populares, novos sujeitos emergentes; a
partir dos pequeninos nos sentimos irmanados neste compromisso. “Tudo isso nos
une. Como não lutar juntos? Como não rezar juntos e trabalhar lado a lado para
defender os pobres da Amazônia, mostrar o rosto santo do Senhor e cuidar de sua
obra criadora?” (Querida Amazônia 110).
Sentimo-nos impulsionados e animados
a reafirmar alguns compromissos:
·
Prosseguir e avançar em nossa pauta pastoral as reflexões e indicações
ousadas do Sínodo em torno dos ministérios, como apresenta o Documento Final do
Sínodo nos números 103 e 111, e da formação inculturada dos nossos agentes;
·
Elaborar um plano estratégico com diretrizes pastorais, que encarne o
sonho social, ecológico, cultural e eclesial para a Pan Amazônia;
·
Incentivar a questão da segurança alimentar como estratégia de cuidado
pela vida;
·
Reafirmar nosso envolvimento efetivo com o Pacto pela Vida e pelo
Brasil, unindo-nos ao “coro dos lúcidos” fazendo nossas as suas pautas: a
vacina para todos, a defesa do SUS, o auxílio emergencial digno, pelo tempo que
se fizer necessário e a investigação da responsabilidade pela má gestão do
sistema de saúde em meio à pandemia do coronavírus. Da mesma forma tornar vivo
o Pacto Educativo Global, proposto Papa Francisco, em todas as regiões da
Amazônia. Conclamamos todas as instâncias eclesiais e a sociedade como um todo
a unir-se neste engajamento; “O que vos é sussurrado ao ouvido, proclamai-o
sobre os telhados” (Mc 10,27). Tendo descoberto a capilaridade das novas
dinâmicas de comunicação, das quais nos servimos para chegar junto às nossas
comunidades em tempos de distanciamento social, igualmente queremos por meio
destes recursos fazer chegar a todos e todas estas nossas inquietações,
esperanças e compromissos.
Exortamos, às mais variadas lideranças de cristãos leigos e leigas, que
não desanimem da luta, que renovem continuamente o senso de comunhão eclesial,
que a paixão pelo Reino de Deus seja sempre alimentada, e que a sensibilidade
para com os mais pobres seja permanente.
Não nos faltem a intercessão de nossos mártires, companheiros de
caminhada, e o olhar benevolente da Senhora de Nazaré, Mãe da Amazônia: “esses
vossos olhos misericordiosos a nós volvei”! A Mãe de Deus está conosco. Sigamos
em frente!
Amazônia, 19 de maio de 2021.
Participantes
do Encontro Bispos da Amazônia Legal
FONTE: https://www.cnbb.org.br/carta-dos-bispos-da-amazonia-brasileira/