*Ione
Buyst
O Concílio Vaticano II, sob o prisma da liturgia foi uma reviravolta e uma abertura maravilhosa não somente para
dentro da Igreja Católica, como “volta às fontes” da fé (Bíblia, patrística...),
mas também em relação às outras igrejas cristãs, ao diálogo com as outras
tradições religiosas e – diria principalmente – uma abertura para com o
“mundo”, uma atenção aos grandes problemas da humanidade. Só se pode celebrar a
memória de Jesus Cristo no espírito do Concílio quando se têm o coração e as
janelas abertas para a realidade: da pessoa humana, da comunidade de todos os
povos e culturas, do cosmos...
A Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada
Liturgia foi o primeiro documento a ser votado e promulgado pelo Concílio
Vaticano II em 04-12-1963. As perspectivas litúrgicas que se abriram a partir deste documento são
muitas. Na época, as reações de quem acompanhava o Movimento Litúrgico eram das
mais entusiastas, porque o Concílio assumiu a maior parte das propostas do
Movimento, como por exemplo:
- Participação ativa de todo um povo sacerdotal (considerada uma
revolução eclesiológica ‘copernicana’, porque até então a liturgia era do
domínio unicamente do clero);
- A liturgia como ação teologal, celebração memorial do mistério
pascal (e não mais como culto, como ‘exercício da virtude da religião’) e este
enfoque do mistério pascal modificando a teologia e a espiritualidade de cada
sacramento e sacramental (p.ex. batismo: não mais centralizado na eliminação do
pecado original; eucaristia, não centralizada na presença real, mas na
participação na morte e ressurreição do Senhor, na unidade de toda a comunidade
eclesial pela partilha do Pão e do Vinho, no Espírito; as exéquias: em
perspectiva de ressurreição e, portanto, sem os paramentos pretos de antes de
concílio), etc.;
- A liturgia como fonte da espiritualidade cristã; talvez o ponto
menos compreendido e posto em prática;
- Substituição do latim pelo idioma próprio de cada povo;
- Devolução da Sagrada Escritura ao povo de Deus, dentro e fora da
celebração litúrgica; a proclamação e interpretação da Palavra de Deus na
liturgia no idioma de cada povo e a restauração do salmo responsorial, da
homilia e da oração universal; fato importantíssimo na reaproximação com as
Igrejas da Reforma Protestante;
- Redescoberta da atuação do Espírito Santo na liturgia e a
consequente introdução das epícleses (invocações do Espírito Santo) – superando
assim um certo “cristomonismo” da Igreja Católica, aproximando mais das igrejas
orientais;
- Afirmação do sentido teológico da assembléia litúrgica como
expressão do ser Igreja;
- Sacramentalidade de toda liturgia (e não somente dos sete
sacramentos) e daí a importância da ritualidade, ou seja, do resgate da
dimensão antropológica da liturgia: gestos humanos (falar, ouvir, comer, beber,
banhar, perfumar...), performativos..., para expressar e comunicar o mistério
de nossa fé;
- Restauração do ano litúrgico em torno da Vigília pascal e do
Domingo, dia do Senhor;
- Substituição do gregoriano por cantos na tradição musical de cada
região (ainda que isso tenha levado vários anos a se concretizar, por causa da
necessidade de estudos e aprofundamento, tanto da parte dos letristas e
compositores, quanto dos corais e, principalmente, do povo em geral);
- Introdução de ministérios litúrgicos não clericais: leitores,
salmistas, acólitos, cantores... (onde antes, além do padre, havia somente
coroinhas). Isso para citar apenas algumas perspectivas. Há muitas outras.
A Igreja pós-conciliar levou a efeito as decisões do
Concílio, particularmente ao que se refere à liturgia, por um longo caminho, e isso foi feito em várias fases:
1) um trabalho de vários anos
para renovar todos os rituais com suas introduções, adequando-as às
determinações do Concílio; este trabalho foi realizado por uma Comissão
convocada pelo papa para este fim;
2) outro trabalho exaustivo: as
traduções destes rituais nos vários grupos linguísticos e depois sua aprovação
por ‘Roma’;
3) em seguida, a introdução
destes novos rituais na prática pastoral em cada diocese, em cada paróquia e
comunidade..., com a formação do clero e do povo! Trabalho pedagógico-pastoral,
catequético, espiritual. Tratava-se não somente de informar, mas de formar clero,
povo e especialistas em liturgia, levando a nova maneira de estudar, entender e
participar da liturgia, unindo os gestos corporais com novas atitudes
espirituais... E tudo isso coordenado e acompanhado pelas respectivas
Conferências Episcopais, em nosso caso, a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil – CNBB, reunindo peritos, preparando documentos e subsídios... Sem falar
da mudança no ensino da liturgia e sacramentos nos institutos de teologia
(trabalho até hoje não terminado!).
Olhando para trás nesses 50
anos: foi um trabalho maravilhoso, criativo, renovador... E que não chegou
ainda ao fim, pois a nova mentalidade, a nova teologia e espiritualidade
litúrgicas estão longe de terem sido assimiladas! Falta a formação mistagógica
(na catequese, na formação litúrgica em todos os níveis).
A Igreja como povo de Deus foi
certamente a tônica mais forte e opção decisiva do Concílio. Como categorias
bíblico-teológicas, no entanto, “povo de Deus” e “comunhão” não são
contraditórias, mas complementares. As relações do povo de Deus, vividas e
fomentadas em pequenas comunidades, não estão baseadas numa ordem
sociopolítica, nem de política eclesiástica, mas estão fundamentadas,
enraizadas, na comunhão trinitária, do Pai, do Filho, do Espírito Santo. A
“lei” que rege as relações no povo de Deus é o amor, fruto do Espírito Santo
que nos foi dado, para podermos seguir a suprema “ordem” de Jesus: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”,
e cuja expressão sacramental mais forte se dá no batismo (Formamos um só corpo,
porque fomos batizados em um só Espírito...; cf. 1Cor 12, 13) e na celebração
eucarística (Comunhão no Corpo e sangue de Cristo, porque bebemos de um mesmo
cálice e comemos de um mesmo Pão - cf. 1Cor 10, 16-17). E, a partir daí, sim,
atuamos nas relações interpessoais, culturais, políticas.
É perigoso generalizar mas, depois de 50 anos da
abertura do Concílio parece estar havendo uma estagnação, ou pior, na prática, uma negação de certos princípios básicos da
reforma conciliar. Para citar apenas alguns aspectos:
1) Volta ao eclesiocentrismo,
clericalismo, devocionalismo, sacramentalismo, ritualismo.
2) Fechamento da Igreja sobre si
mesma, brecando o ecumenismo e a abertura para com o mundo. Parece haver mais
preocupação em construir templos (cada vez maiores) e atrair multidões para uma
liturgia-espetáculo, do que em formar um povo consciente e competente para agir
na sociedade como fermento na massa, como pede o Concílio. Temos uma estrutura
eclesiástica considerável, porém um laicato praticamente inexistente. Há, sim,
pastorais sociais muito ativas e fazendo um trabalho eficiente, porém
geralmente desconectadas da liturgia. E a maioria dos frequentadores de missas
não acompanha e não recebe formação para viver toda a sua vida, inclusive as
relações sociais e políticas, de acordo com aquilo que celebramos. É como se
fossem duas ‘igrejas’, uma ao lado da outra.
3) Falta uma liturgia que
fomente a espiritualidade e mística da missão no mundo, tendo como fonte a
participação na liturgia, meta principal do Movimento Litúrgico.
4) Ao mesmo tempo, temos uma
vida litúrgica muito interessante acontecendo, amadurecendo nas bases, com
celebrações dominicais da Palavra, celebrações do Tríduo Pascal, celebrações da
reconciliação, ofício divino das comunidades, vigílias de oração, unindo fé e
vida, coordenadas por leigos e leigas. É uma esperança.
No entanto, levando em conta as recentes decisões do
Papa Bento XVI em reintegrar os seguidores do bispo tradicionalista Marcel
Lefevre, em retomar ritos litúrgicos de tradição tridentina, o momento da
Igreja é de confusão e de perplexidade. É um
anular das propostas litúrgicas e eclesiológicas do Concílio.
O Concílio deixou claro que o
mais importante não é a Igreja, mas o Reino de Deus e o evangelho de Jesus
Cristo. A Igreja deve sair de sua posição eclesiocêntrica, dominadora, e
crescer na atitude de escuta, diálogo, serviço. Ou melhor, não a Igreja
enquanto instituição, mas enquanto povo de Deus, conjunto de comunidades vivas
construídas em torno da Palavra e da Liturgia, atentas ao Espírito que sopra
onde quer e nos acompanha na missão de estimular a fraternidade universal,
partindo dos pobres, dos necessitados.
É preciso dar prioridade à
formação de cristãos conscientes, engajados, abertos ao “mundo”, abertos ao
ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, participantes ativos na busca de
solução dos problemas que assolam a sociedade atualmente, em todos os níveis,
local e internacional. Devemos reconhecer o pluralismo religioso numa sociedade
pluricultural e criar atitude de diálogo e colaboração com as outras tradições
religiosas e espirituais.
No tocante à liturgia, antes de
tudo, celebrar em pequenas “comunidades de vida”, comunidades de base, onde é
possível a relação pessoal, a partilha “das alegrias e esperanças, das
tristezas e angústias”, como diz o documento Gaudium et spes (sobre a Igreja no mundo de hoje), onde é
possível meditar comunitariamente a Palavra de Deus proclamada, interpretando-a
dentro do contexto vital daquela comunidade, vivenciar a partilha de vida, de
bens, de informação e formação, atentos ao que acontece no mundo, atentos aos
sinais do Reino de Deus na realidade local, nacional, mundial, com momentos
profundos de “fração do pão” e da Palavra, como em Emaús (Lc 24, 16-35), como
nas comunidades retratadas nos Atos dos Apóstolos (2,42; 20,7-12).
Outra coisa é que a mulher na
Igreja Católica continua sendo considerada e tratada como membro eclesial de
segunda categoria, num total descompasso com a situação da mulher na sociedade
atual. Não tendo acesso à ordenação, não pode coordenar plenamente uma
comunidade, nem presidir as assembleias litúrgicas; não participa das decisões
realizadas em nível de episcopado. Isso é prejudicial em três níveis:
1) para as próprias mulheres,
porque são consideradas cristãs de segunda categoria (contrariando p.ex. Gl
3,27-28 que fala da igualdade fundamental, baseada no batismo: “Vós todos que
fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não há mais judeu ou
grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus”);
2) para a sociedade, porque esta
atitude da Igreja Católica reforça o machismo e a discriminação das mulheres
que persistem na cultura atual e que são contrários aos direitos da mulher como
pessoa humana;
3) prejudica a evangelização,
porque distorce a própria imagem de Deus, pois fomos criados “à sua imagem e
semelhança; homem e mulher ele os criou”, diz o livro de Gênesis. Pela
organização patriarcal e machista da Igreja, ocultamos, portanto, 50% da imagem
de Deus, seu lado feminino.
Ione Buyst é doutora em Teologia Dogmática
com Concentração em Liturgia, pelo Centro de Liturgia da Pontifícia Faculdade
de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo. É articulista e membro do
conselho de redação da Revista de Liturgia, São Paulo, desde 1972; membro e
cofundadora da ASLI (Associação dos Liturgistas do Brasil) e da CELEBRA, Rede
de Animação Litúrgica.