31º DOMINGO DO TEMPO COMUM: Marcos 12,28-34
No
evangelho para este final de semana, a comunidade de Marcos apresenta-nos Jesus
ensinando o mandamento maior no templo de Jerusalém (Mc 11,27; 12,35).
Auxiliado pela sinagoga, o templo era o pilar de um sistema que garantia o
ensino e o cumprimento das leis, bem como a aplicação das penas para quem não
as cumprisse.
Nesse
templo, um escriba ouviu a discussão de Jesus com os saduceus e como respondera
muito bem a eles (Mc 11,18-27). Os saduceus compunham o partido judaico mais
poderoso naquele momento. Nele, juntavam-se os que controlavam a religião a
partir do templo, os sacerdotes, e os que detinham o poder sobre o comércio em
Jerusalém, isto é, os anciãos.
Em nossos
dias, diríamos que é o partido do capital financeiro com apoio da grande mídia
empresarial e de setores eclesiais. E não é por acaso que continuam armando
ciladas contra os direitos do povo e contra suas lideranças, através de
calúnias, de condenações sem provas e de golpes institucionais. O conflito
entre diferentes projetos de vida leva-nos a perceber que a plataforma do Reino
de Deus revoluciona todos os sistemas, os de ontem e os de hoje, grandes ou
pequenos, dentro ou fora de nós.
O
especialista da lei pergunta a Jesus pelo primeiro de todos os mandamentos. Era
uma pergunta que até uma criança responderia com o Shemá (Escuta),
que os judeus recitavam todos os dias (Dt 6,4-9). Talvez ele quisesse, como os
saduceus, ridicularizar Jesus. Mas o que o escriba não esperava é que Jesus
acrescentaria um segundo mandamento tão importante quanto o primeiro. Prestar
culto a Deus com ritos até que é fácil, mas amar o próximo na mesma medida que
amamos a nós mesmos…
Ao colocar
o amor como motivação maior para todo o nosso agir, Jesus torna relativas todas
as leis, doutrinas e tradições. Elas somente estão conforme a vontade de Deus,
caso tiverem, como fonte primeira, o amor. O amor é o único caminho do Reino.
Na troca
de ideias com Jesus, o escriba teve uma atitude diferente dos saduceus. Repetiu
o que Jesus dissera e, além disso, fez memória de Oseias 6,6, dizendo que “o
amor está acima de todos os holocaustos e todos os sacrifícios” (Mc 12,33). E
Jesus ficou admirado, ao ponto de dizer que o legista não estava longe do Reino
de Deus (Mc 12,34).
Jesus resgata o espírito da lei
Em que
parte das Escrituras Jesus busca o espírito da lei, o princípio do amor? Para o
primeiro mandamento, ele recorre a um dos livros da lei judaica, o Deuteronômio
(6,4-5).
Convém
percebermos que, diferentemente de Mateus e Lucas, Marcos recorda que Jesus
também citou a frase que antecede o mandamento do amor a Deus: “Ouve, ó Israel,
o Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt 6,4). Assim, Jesus deixa claro que o
projeto do Reinado de Deus está diametralmente oposto ao projeto de César,
considerado o único senhor no Império Romano.
E segue:
“Amarás o Senhor, teu Deus…”. É um amor intenso, isto é, com todo o nosso ser:
coração e alma, força vital e mente.
Jesus
encontra o segundo mandamento em outro escrito do Pentateuco, o livro do
Levítico (19,18): “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Também esse é um amor
profundo, pois é amar o próximo tanto quanto amamos a nós próprios.
Segundo o
sermão da montanha (Mt 5–7), Jesus diz o mesmo em outras palavras, resumindo a
lei e os profetas, isto é, todas as Escrituras: “Tudo que desejais que as
pessoas vos façam, fazei-o vós a elas” (Mt 7,12). Jesus vai além do senso comum
que dizia: “Não faça às outras pessoas o que não queres que te façam”. Ele
propõe um amor mais intenso. E amar intensamente é acolher de coração. É cuidar
com corpo e com alma. É escutar com mente aberta. É solidariedade, força de
vida…
O amor é
a força do universo, é o centro da vida nutrida em Deus, pois Deus é amor (1Jo
4,8.16). Segundo o apóstolo Paulo, se andamos no caminho de Deus, vivemos o
amor que gera vida, “pois toda a lei se resume neste único mandamento: amarás o
teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14; Romanos 13,9). Portanto, “o amor é o
cumprimento pleno da lei” (Rm 13,10). Ao dizer que “toda lei e os profetas
dependem desses dois mandamentos” (Mt 22,40), Jesus torna todas as Escrituras
relativas. Elas têm sentido somente quando estão em relação ao amor, dele
dependem e por ele são dinamizados. Somente o amor é absoluto e dá sentido às
Escrituras. O amor, portanto, é critério para reler qualquer texto da Bíblia.
Os judeus
mais piedosos haviam catalogado todas as leis do Pentateuco. Chegaram a
relacionar 613 leis. Dessas, 365 eram proibições como, por exemplo, “não
matarás” (Ex 20,13). E 248 eram leis afirmativas como “lembra-te de santificar
o dia de sábado” (Ex 20,8). Uma quantidade tão grande de leis era difícil para
o povo cumprir. De um lado, por não saber ler e, por isso, não conhecer as leis
em seus detalhes. De outro, por não ter, na luta cotidiana pela sobrevivência,
condições de cumprir a lei em todos os seus pormenores.
Conforme
uma informação que encontramos no evangelho segundo João, fariseus diziam que
“esse povinho que desconhece a lei, são uns malditos” (Jo 7,47-49). Segundo
essa postura preconceituosa e intolerante de fariseus, as pessoas “menos
informadas” sobre a lei e, em consequência, não a cumprindo, estariam em pecado
e, por isso, seriam amaldiçoadas por Deus. E essa era a situação da maioria do
povo pobre daquele tempo. Apenas uma minoria considerava-se abençoada por Deus
pelo fato de ser “mais informada” e cumprir a lei, bem como as tradições orais
sobre o puro e o impuro. Ainda hoje, há pessoas e grupos que se consideram mais
próximas de Deus do que outros movimentos ou grupos religiosos.
Ao dar
valor relativo às inúmeras prescrições e ao colocar o amor como único princípio
no cuidado e promoção da vida, Jesus abre a possibilidade aos pobres de também
fazerem parte das bênçãos do Pai. Para muitos fariseus, por considerarem os
pobres “menos informados” sobre a lei, estes estariam excluídos dessas bênçãos
de Deus. Somente eles achavam ter esse privilégio. No entanto, em sua prática,
Jesus derruba os muros que impediam o acesso dos pobres ao Reino. E mais.
Alegra-se porque são justamente eles que acolheram a Boa Nova (Mt 11,25-27; Lc
10,21-22), enquanto os que se achavam “os mais informados”, porém, prisioneiros
de inúmeras regrinhas e preconceitos, fecharam-se ao projeto de Deus. Assim,
diante da dificuldade para cumprir tantas leis, Jesus propõe um caminho
alternativo, o caminho do amor.
O caminho
do amor é um novo jeito de caminhar, é uma nova prática. Sua vivência não é
algo abstrato, teórico, mas é um amor bem concreto. Antes de procurar um
próximo para amar, importa tornar-se próximo de quem precisa de solidariedade.
É isso que a comunidade de Lucas quer-nos lembrar ao acrescentar, à narrativa
em que revela o mandamento do amor, a parábola do samaritano compassivo (Lc
10,25-37), convidando-nos a fazer-nos próximos de que está à margem do caminho.
Caminhemos, portanto, no caminho do amor, da compaixão, da misericórdia.
Definitivamente, o caminho do amor é o caminho da solidariedade.
As
comunidades de João, diferentemente das de Mateus, Marcos e Lucas, não separam
o mandamento de Jesus em dois: amar a Deus, de um lado, e o próximo como a si
mesmo, de outro. Elas vão mais fundo e identificam o amor a Deus com o amor ao
próximo: “Se alguém disser: ‘amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é mentiroso;
pois quem não ama o seu irmão a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê”
(1Jo 4,20).
Ademais,
as comunidades joaninas consideram insuficiente “amar o próximo como a si
mesmo”. É preciso ir além: “Amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim
também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13,34; 15,12.17).
O amor
deve ser sem limites, tal como Jesus mesmo amou, isto é, sendo fiel ao projeto
do Pai até as últimas consequências. E sabemos que essa fidelidade lhe custou a
vida. Porém, ela também é a razão fundamental porque ele continua vivo,
presente na luta de quem o segue pelo caminho da justiça do Reino.
Oração
Ó Deus de ternura e de bondade,
diante da crise em que o Brasil e o mundo se encontram,
permite-nos que teu amor nos conduza
na superação de todas as estruturas de morte
que ameaçam a vida no planeta. Amém!
Texto do Ildo Bohn Gass
Fonte: cebi.org.br