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domingo, 20 de abril de 2025

A PAIXÃO SEGUNDO SÃO LUCAS

                                Ticiano, "Cristo a caminho do Calvário" - Museu do Prado

Esta artigo, publicado na revista Civiltà Cattolica, é uma verdadeira catequese sobre a Paixão de Cristo. Não deixe de ler até o final!

A PAIXÃO SEGUNDO SÃO LUCAS

Cada Evangelho apresenta a Paixão e a Ressurreição de Jesus de uma maneira específica. Estamos falando do mesmo mistério, mas cada um tem seus próprios acentos literários e teológicos. Nas últimas décadas, tornamo-nos mais sensíveis a esta originalidade característica de cada um dos Evangelhos. Isto significa que, em vez de considerar os evangelistas como meros coletores de tradições, simples executores, os vemos como verdadeiros autores, autênticos teólogos. É claro que os evangelistas estão inseridos em uma comunidade e respeitam as tradições sobre Jesus, conforme lhes vêm da tradição, mas, ao mesmo tempo, são capazes de verdadeira criatividade teológica: uma criatividade que acreditamos ter sido inspirada pelo Espírito Santo, porque o Espírito Santo presente nas comunidades cristãs reconheceu que esses quatro Evangelhos nos falam corretamente sobre a morte e ressurreição de Jesus.

Entre os quatro evangelistas temos São Lucas. O que podemos dizer sobre seu relato da Paixão? Quais são os aspectos originais de Luca? O que o Espírito Santo nos diz sobre Jesus e sua Paixão em particular através de Lucas?

O trabalho de Lucas

Antes de tudo, vale destacar duas coisas: a primeira é que Lucas afirma logo no início do seu Evangelho que o compôs a partir do que outros haviam escrito ou transmitido. Ele diz explicitamente que fez escolhas, reorganizou materiais e, portanto, tentou fazer algo diferente de seus antecessores. Se, como a maioria dos estudiosos bíblicos, acreditamos que Lucas teve acesso ao Evangelho segundo Marcos e que ele tirou cerca de 80% dos dados de lá, será interessante ver como ele os modificou.

Em segundo lugar, Lucas é o único que escreveu uma obra dupla, que inclui tanto o Evangelho quanto os Atos dos Apóstolos. Ele queria, portanto, criar ressonâncias e paralelos entre a trajetória de Jesus e a dos apóstolos; ele queria que suas vidas estivessem explicitamente no mesmo nível.

Há muitas correspondências entre o Evangelho e os Atos: muitas vezes os apóstolos reproduzem os gestos e os ensinamentos de Jesus. Por exemplo, Jesus curou um paralítico: Pedro e Paulo fazem o mesmo. Jesus ressuscitou os mortos: Pedro e Paulo também o fizeram. Jesus ensinou as multidões no templo: Pedro e Paulo fazem o mesmo. Jesus foi impelido pelo Espírito a ir em direção a Jerusalém, mesmo sabendo que o aguardavam provações e até a morte: do mesmo modo, o final dos Atos é marcado pelos anúncios da paixão que Paulo terá que sofrer em Jerusalém. Paulo sobe a Jerusalém avisado pelo Espírito Santo que provações o aguardam. E os exemplos poderiam ser multiplicados.

Tudo isso nos leva a nos perguntar, quando lemos a Paixão segundo Lucas, quais elementos remetem aos Atos e por quê. E o que isso nos diz sobre a Paixão de Jesus em relação a nós, porque os apóstolos não podem ser separados de nós: o que lhes diz respeito, nos diz respeito também.

Compaixão por Jerusalém

Após a longa subida em direção a Jerusalém, iniciada em Lucas 9,51, Jesus finalmente avista a cidade. E então ele chora por isso. É um Jesus humano e emotivo que abre os capítulos da Paixão. Lucas não se resigna à rejeição de Israel, e veremos agora vários sinais disso.

Quando Jesus estava ensinando no templo (veja Lucas 19,47), embora as autoridades de Jerusalém estivessem conspirando para matá-lo, Lucas imediatamente nos diz que "todo o povo ouvia tudo o que ele dizia" (19,48). Um pouco mais adiante, nos ensinamentos dados por Jesus em Jerusalém, Lucas introduz uma observação sobre os escribas: “Enquanto todo o povo escutava, disse Jesus aos seus discípulos...” ( Lc 20,45). E ele conclui o capítulo 21, em que Jesus fala do fim dos tempos, com esta frase: “E todo o povo, de madrugada, ia ter com ele no templo para o ouvir” ( Lc 21,38). Da mesma forma, durante o caminho até a cruz, Lucas nos dirá que “uma grande multidão de povo o seguia, e também de mulheres que batiam no peito e o lamentavam” ( Lc 23,27).

Por que esse fato é importante? Porque muitas vezes na história do cristianismo pareceu que a oferta cristã de perdão excluía os judeus, que foram julgados como um todo como culpados da Paixão. Lucas, por outro lado, não cai nessa armadilha. Esses versículos da Paixão têm um paralelo em Atos, onde a oferta do Evangelho continua a ser feita aos judeus nas sinagogas e até mesmo no Templo. E é ainda mais interessante notar que, na época em que Lucas escreve, o templo não existe mais.

Paulo continua a se dirigir aos judeus: uma mão amiga é estendida aos fariseus e aos líderes dos judeus. Os Atos nos apresentam o grande Gamaliel como um personagem inteligente e espiritual. E também em Roma, Paulo continua seu diálogo com os líderes da sinagoga. Embora esse diálogo seja difícil, e embora muitos não aceitem essa palavra, o fato é que Jesus é o Messias de Israel, o Messias do seu povo, aquele que chorou sobre Jerusalém e que continua sendo, segundo as palavras de Simeão, “luz para revelação aos gentios e para glória do teu povo Israel” ( Lc 2,32).

O serviço no centro da Última Ceia

Depois de retomar elementos de Marcos sobre os preparativos para a refeição da Páscoa, Lucas nos apresenta um discurso de despedida de Jesus. É neste contexto que Jesus nos deixa os gestos e as palavras que conhecemos sobre o pão e o vinho. Este discurso de despedida é mais longo e mais estruturado que o de Marcos. Lucas retoma um gênero literário que se tornou muito popular naquela época e que era chamado de "discurso de despedida". Este é o momento em que o profeta ou herói, antes de morrer, entrega suas últimas instruções, distribui as tarefas, ou seja, comunica seus últimos desejos.

Em Lucas, é impressionante que ele tenha escolhido colocar estes versículos no centro da cena: "Mas não façam isso; antes, o maior entre vocês seja como o mais novo, e o que lidera como aquele que serve. Aliás, quem é maior? Quem está à mesa ou quem serve? Não é aquele que está à mesa? Contudo, eu estou entre vocês como aquele que serve" ( Lc 22,26-27). É claro que a questão do serviço é central.

De fato, São João se colocará em uma perspectiva semelhante quando colocar o lava-pés no centro da Última Ceia. A lição subjacente é clara e ainda nos alcança hoje: para aqueles que tendem a se concentrar na dimensão estritamente ritual ou litúrgica do rito da Eucaristia, Lucas e João dizem que o que conta é o serviço, este é o significado daquele gesto. Se vocês se contentam em vir à Eucaristia sem servir os seus irmãos, vocês estão se enganando e não entendem o que esse gesto realmente significa. Como Lucas e João foram escritos no final do primeiro século, entende-se que a tentação do ritual separado da existência não é um problema novo.

O dom no centro do Evangelho

Mas há ainda outro aspecto a ser destacado na maneira como Lucas relata o último gesto de Jesus: ele insiste fortemente na dimensão do “dom”. Enquanto Marcos usa esse termo apenas uma vez, Lucas diz: "[Jesus] tomou o pão, deu graças, partiu-o e deu -lho, dizendo: 'Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim'" ( Lc 22,19). Não achamos que isso seja uma redundância desnecessária. E gostaríamos de confirmar esta nossa crença referindo-nos a uma pequena passagem dos Atos.

Este é o discurso de despedida de Paulo aos cristãos de Éfeso, a cidade onde ele viveu e onde fundou uma comunidade: os anciãos de Éfeso são para Paulo um pouco como os Doze são para Jesus. O discurso de Paulo é muito tocante e cheio de pathos , e termina de uma forma estranha; Ele diz: “Em tudo vos mostrei que, mediante esta obra, devemos ajudar os fracos, recordando as palavras do Senhor Jesus, que disse: 'Há maior felicidade em dar do que em receber!'” ( Atos 20,35). Nós, cristãos, leitores da obra de Lucas, ficamos surpresos: por que essas palavras de Jesus não estão no Evangelho? Nem no Lucas? Como é que tanta felicidade só pode ser encontrada aqui?

Acreditamos que aqui Lucas está falando diretamente conosco e nos dizendo: "Quer entender o significado de toda a vida de Jesus e, em particular, o significado de sua Paixão? Pois bem, é no dom que você o encontrará." Toda a vida de Jesus está sob o signo da doação. Um presente que talvez vá além da nossa capacidade de compreensão, mas ainda assim é um presente. Jesus não esperou que os discípulos entendessem tudo, mas se entregou sem reservas a eles, a nós e a todos: “por nós e pela multidão”.

Do ponto de vista teológico, não importa se Jesus pronunciou ou não esta bem-aventurança, porque a única coisa certa é que o Espírito Santo quis que estas palavras estivessem na boca de Paulo que faz Jesus falar. É natural que o estudioso do Jesus histórico queira investigar para saber se é provável, ou não, que Jesus as tenha pronunciado durante sua vida pública, mas isso é secundário. Do ponto de vista teológico, porém, é interessante notar que Lucas exerceu sua criatividade teológica ao forjar essa expressão, mesmo que não a tenha herdado da tradição. Neste caso, fica claro que sua comunidade e os primeiros cristãos acreditavam que quem expressava essa bem-aventurança era justamente Jesus ressuscitado. A vida cristã está – assim como a Paixão – sob o signo do dom.

Simão Pedro no centro da oração de Jesus

Depois de ter insistido no dom e depois de ter insistido no serviço, colocando o foco no serviço no centro do discurso (que em Marcos foi colocado em primeiro lugar: ver Mc 10,42-45), Lucas tem uma passagem surpreendente sobre Simão Pedro. Todos sabemos que Jesus previu a negação de Pedro e que também anunciou que esta não seria a última palavra. Mas Lucas abre este tema tão conhecido com um começo surpreendente: “Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo; mas eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos” ( Lc 22,31-32). Jesus continua chamando Simão pelo seu nome de nascimento, e não pelo novo nome que lhe deu. Este é um fato que também se encontra nos outros Evangelhos. Por que?

É difícil responder a um fato tão estranho: a hipótese menos improvável nos parece ser a de que o nome Cefas (Pedra), que corresponde à sua missão — a de ser uma rocha —, por definição é válido apenas em referência aos discípulos. Como poderia Pedro ser uma rocha para Jesus, que é a pedra angular, a rocha por excelência? Mas há mais. No momento da confissão em Cesareia, quando Simão Pedro testemunhou pela primeira vez a identidade messiânica de Jesus, Mateus colocou o tema da primazia de Pedro naquele local, na Galileia, ou seja, o fato de Jesus ter confiado a Pedro uma missão única e específica em relação aos outros apóstolos. Uma missão que continua hoje na missão do Papa, sucessor de Pedro.

Lucas, contudo, não diz nada sobre essa missão na confissão relatada em 9,20. Ele escolheu basear a primazia de Pedro na oração de Jesus por ele durante a Paixão. É uma escolha teologicamente muito forte. Satanás tentará todos os apóstolos, mas Jesus diz que orará somente por Pedro! É uma escolha imprudente. Por que? Porque Pedro é a pedra angular. O fato de ele resistir fará com que outros também resistam. E assim, nesta oração especial de Jesus por Simão, Lucas estabelece a futura missão de Pedro: a de confirmar seus irmãos.

“Confirmar” é o grande verbo dos apóstolos nos Atos. Um verbo que já nos orienta para os Atos e para a futura missão de Simão Pedro. A primazia de Pedro não se funda principalmente numa palavra gloriosa proferida num momento de entusiasmo na Galileia, mas na oração de Cristo nos seus últimos dias, quando enfrenta a tentação pensando nos seus discípulos e, em primeiro lugar, em Pedro.

As Quatro Testemunhas

Durante a sua Paixão, Jesus entra gradualmente na solidão: a solidão do justo perseguido, do profeta desprezado, do Filho do Homem humilhado. Mas Lucas não queria que essa solidão fosse total. Surgem figuras que parecem próximas de Jesus e garantem que nossa humanidade esteja presente na humanidade de Jesus enquanto ele caminha em direção à morte.

Em primeiro lugar, Simão de Cirene ( Lc 23,26). É ele quem ajuda Jesus a carregar a sua cruz, cumprindo assim as palavras do Senhor: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz, e siga-me” ( Lc 9,23). Claro que Simão não queria segui-lo, mas ele o fez. Ele não se esquivou disso. Ele fez isso no dia em que deveria ser feito, e a experiência mudou sua vida. De fato, ele é um homem cujo nome nos é dado, enquanto Marcos relatará os nomes de seus filhos (ver Mc 15,21), para melhor nos indicar que ele certamente se tornou um cristão.

No final da narrativa da Paixão, temos a bela figura de José de Arimateia, “homem bom e justo” ( Lc 23,50), que é membro do Sinédrio. E isso também nos faz entender que nem todos os membros do Sinédrio eram a favor da morte de Jesus. José também, sem dúvida, se tornou um cristão.

Entre estas duas figuras identificadas, há outras duas que são anônimas: um judeu e um pagão, o bom ladrão ( Lc 23,39-48) e o centurião ( Lc 23,47). Podemos dizer que esta última figura é retomada por Marcos, mas Lucas é o único que nos fala do bom ladrão. Esse diálogo é importante para ele. O teólogo assuncionista Bruno Chenu descreve bem isso, e queremos citá-lo: “O último dos bandidos torna-se o primeiro dos salvos. É das profundezas da miséria humana que brota a fé pura em Jesus, o Salvador. Reconhecimento da culpa, proclamação da inocência do homem de Nazaré, invocação do poder misericordioso de Jesus que pode transcender a morte: estas três palavras são outras tantas invocações que ressoam no coração do homem. Nem sempre é fácil reconhecer e confessar a própria cumplicidade com o mal. E se muitos denunciam com o ladrão a injustiça do julgamento de Jesus, quantos ousam descobrir no Crucifixo os traços de Deus na história? Reunindo toda a pesquisa religiosa da história, a oração do ladrão deve ser inscrita na memória de Deus. A resposta de Jesus responde à pergunta além de todas as expectativas. A salvação não é para amanhã, mas para hoje, e é alcançada no “estar com” Jesus. A fé confiante do ladrão permite que ele acesse imediatamente o paraíso. Segundo as palavras dos Padres da Igreja, ele não se contentou em roubar a terra, mas também roubou o céu. Canonização expressa. Mas o malfeitor mostra a cada um o benefício do verdadeiro arrependimento e da fé esperançosa. A porta da Vida está aberta para sempre" [1] .

As mulheres no túmulo

Mas, há algumas testemunhas que esquecemos: as mulheres. E o testemunho delas é fundamental, porque os encontraremos novamente na manhã de Páscoa. Claro que Lucas não é o único a falar de mulheres, porque Marcos já as havia mencionado ("Estavam ali também algumas mulheres, observando de longe, entre elas Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, o menor, e de José, e Salomé. Quando ele estava na Galileia, estas o seguiram e o serviram...", Mc 15:40-41). Lucas nos diz sobriamente: “Todos os seus conhecidos, inclusive as mulheres que o tinham seguido desde a Galileia, estavam de longe, observando essas coisas” ( Lc 23,49).

Todos sabemos que Lucas é o evangelista que mais lida com mulheres. Ele frequentemente segue um episódio envolvendo uma mulher com outro envolvendo um homem: por exemplo, o episódio da mulher procurando a moeda perdida segue imediatamente o do homem procurando a ovelha perdida. Mas por que neste caso Lucas não relata seus nomes? É para guardá-los para mais tarde? Para a manhã de Páscoa? Quando Lucas escreve: “Eram Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago. “E as outras mulheres que estavam com elas contaram também estas coisas aos apóstolos” ( Lc 24,10). Mas, acima de tudo, há o fato de que Lucas é o único que já nos falou sobre elas desde a Galileia. Pois ele dissera: "Estavam com ele os Doze e algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demônios; Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes; Susana e muitas outras que os serviam com os seus bens" ( Lc 8,1-3).

As mulheres estão no início e no fim da vida pública de Jesus. Elas se tornam discípulas e, por esse mesmo fato, testemunhas oculares. Assim, Lucas é o único evangelista que apresenta mulheres como testemunhas oculares credíveis de toda a vida de Jesus, da Galileia a Jerusalém. Ele enfatiza o número delas e destaca o fato de que elas seguiram Jesus.

Os olhos da fé

Para Lucas, assim como para Jesus, nada é mais importante que a fé. O evangelista quis destacar, por um lado, a fé de Jesus até o fim e, por outro, a fé das testemunhas. A fé de Jesus se manifesta justamente quando ele está dominado por sentimentos de angústia e abandono. Ele obedece a uma necessidade interna marcada pelo famoso "deve". Mas essa necessidade, essa força imperiosa da vontade do Pai, não nos é apresentada como algo que atinge um homem que abandonou toda vontade e toda liberdade. Pelo contrário, Lucas descreve um Jesus que vive esses eventos de forma muito íntima e que está continuamente envolvido no que está em jogo. Em contraste com as três fórmulas em Marcos que afirmam "o Filho do Homem deve..." (cf. Mc 8,31; 9,31; 10,33), Lucas faz Jesus dizer: "É necessário que se cumpra em mim esta palavra da Escritura " ( Lc 22,37). Percebemos o "eu" de Jesus. É também um Jesus cuja condição pessoal não o impede de se interessar pelos outros e de se compadecer de suas vidas. É assim que ele fala com as mulheres de Jerusalém e concorda em falar com o bom ladrão.

Finalmente — e esta é uma escolha de longo alcance — Lucas coloca estas últimas palavras na boca de Jesus: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" ( Lc 23,46). Esta expressão retoma uma frase que vem de um salmo ( Sl 31,6), acrescentando-lhe a palavra mais importante de toda a vida de Jesus, aquele “Abba-Pai” que resume toda a sua relação com o Pai. Esta palavra expressa o amor do Filho pelo Pai. Jesus foi testado, mas perseverou.

No que se refere às testemunhas, Jean-Noël Aletti [2] põe em evidência um paradoxo que se encontra no cerne da narração lucana da crucifixão: é no momento em que as trevas descem sobre a terra, “porque o sol foi eclipsado” ( Lc 23, 45), que aparece o verbo “ver”. É neste momento que a testemunha privilegiada que é o centurião proclama a justiça e a inocência de Cristo: “Quando o centurião viu o que tinha acontecido, deu glória a Deus, dizendo: ‘Verdadeiramente este homem era justo’” (Lc 23,47). É diante de um condenado na cruz que o centurião "vê" um homem justo. E Lucas continua: “Da mesma forma, toda a multidão que tinha saído para ver este espetáculo, quando viu o que tinha acontecido, saiu batendo no peito. Todos os seus conhecidos, inclusive as mulheres que o tinham seguido desde a Galileia, estavam de longe, observando essas coisas" ( Lc 23,48-49).

Assim, um centurião romano e um pagão, a multidão de pessoas e os próprios amigos de Jesus veem. Apesar da noite, os olhos podem ver. Mas ao mesmo tempo Jesus morreu… Esses olhos que veem além do visível prenunciam os olhos dos discípulos de Emaús e das testemunhas da Páscoa, que verão em plena luz do dia o que deveria ser invisível.

Jesus de Lucas

Ainda haveria muito a dizer sobre outros elementos desta narrativa da Paixão em Lucas. Mas queremos terminar retornando à pessoa de Jesus. Que imagem de Jesus Lucas nos oferece? Ou seja, que imagem de Jesus o Espírito Santo, o Espírito de Jesus ressuscitado, quis nos transmitir através deste Evangelho?

Parece-nos que a principal contribuição de Lucas é fazer-nos tocar com as mãos – por assim dizer – a humanidade de Cristo, o fato de que a sua carne é semelhante à nossa, de que o seu coração é semelhante ao nosso. Como? Jesus é um homem de desejo. Ele diz: “Desejei ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes que eu sofra” ( Lc 22,15). E há também aquela passagem tão forte e enigmática em que Jesus luta como se fosse um lutador na arena: “Então lhe apareceu um anjo do céu, que o fortalecia. E, tendo-se tornado cada vez mais difícil, orava mais intensamente, e o seu suor tornou-se como grandes gotas de sangue, caindo até ao chão" ( Lc 22,43-44). No momento em que Jesus mais se assemelha a nós, coberto de grandes gotas de suor, o Senhor o consola. Mas chama a atenção a ordem dos versículos, que todos gostariam de inverter: que Jesus primeiro experimenta a sua angústia para depois ser consolado. E, em vez disso, temos o oposto: ele é consolado, mas isso não o impede de cair em agonia. Não há incompatibilidade entre a graça de Deus e a angústia, entre o apoio de Deus e o sentimento de fraqueza.

Esta passagem é de grande conforto para todos os discípulos em sua provação: Cristo não está longe deles em sua luta, e nem está longe o Pai, que envia seu anjo. Em certo sentido, Jesus está sozinho, e em seu julgamento não há ninguém para defendê-lo. Por outro lado, ele não está sozinho, pois alguns "amigos" e "mulheres" continuam próximos dele. Como em São João: quando Jesus é preso, um discípulo anônimo corta a orelha de um servo do sumo sacerdote (cf. Jo 18, 10); mas, ao contrário de João, aqui Lucas nos diz: “Mas Jesus interveio, dizendo: Deixa disso! Já chega!”. E, tocando-lhe a orelha, o curou" (Lc 22,51). Jesus continua sendo essa pessoa apaixonada por curar e cuidar do homem. Mesmo quando todos os esforços deveriam ser direcionados a si mesmo.

Acima de tudo, entre as três palavras na cruz, Lucas faz Jesus dizer: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” ( Lc 23,34). Notemos também esta humildade de Cristo: de fato, não é Ele quem perdoa, Ele não diz “eu”. Jesus permanece voltado para o Pai: intercede sem tomar o lugar do Pai; ele não fez isso e nunca fará. Assim, as três palavras pronunciadas na cruz são todas dirigidas a Deus, seu Pai: duas o nomeiam expressamente, a terceira fala do paraíso, que nada mais é do que o seio do Pai.

Assim, o relato da Paixão escrito por Lucas é extremamente fiel aos dados da tradição, especialmente aqueles herdados do Evangelho segundo Marcos. Mas, ao mesmo tempo, Lucas usa todos os recursos à sua disposição para refinar seu retrato de Jesus, um retrato consistente com o que foi manifestado no momento original na sinagoga de Nazaré. Jesus continua sendo aquele homem de quem Pedro falará em breve para resumir mais uma vez toda a sua vida em uma fórmula: "Jesus de Nazaré, que andou por toda parte fazendo o bem [...], porque Deus estava com ele" ( Atos 10,38).

Cada Evangelho é um tesouro, e cada um nos apresenta uma maneira de olhar para Jesus que enriquece nossa fé. A Paixão segundo Lucas revela um Jesus extremamente humano, compassivo e bom, um Jesus que não está distante e inacessível para nós, mas que está próximo de nós. Um Jesus que é ao mesmo tempo mestre e modelo, irmão e intercessor.

Marc Rastom*

*Correspondente da França para La Civiltà Cattolica . Professor de Exegese Bíblica nas Facultés Loyola de Paris e no Pontifício Instituto Bíblico.

[1] . B. Chenu, « Le malfaiteur exemplaire », em La Croix , 6 de abril de 1996.

[2] . Cfr. J.-N. Aletti, A arte de contar a história de Jesus Cristo , Brescia, Queriniana, 1991.

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