Você já
ouviu falas dos Manuscritos do Mar Morto ou Manuscritos
de Qumran? Os Manuscritos do Mar Morto são uma coleção de
centenas de textos e fragmentos de texto encontrados em cavernas de Qumran, no Mar
Morto, no fim da década de 1940 e durante a década de 1950. Eles foram compilados
e guardados por uma doutrina de judeus conhecida como Essênios, que viveram em
Qumran do século II a.C. até aproximadamente o ano 70. Os Manuscritos do
Mar Morto são de longe a versão mais antiga do texto bíblico, datando de mil
anos antes do que o texto original da Bíblia Hebraica, usado pelos judeus
atualmente.
Conheça
mais sobre eles neste artigo de Frei Ildo Perondi.
MANUSCRITOS DE QUMRAN
OU DO MAR MORTO
Frei
Ildo Perondi (ildo.perondi@pucpr.br)
Na primavera de 1947
foram descobertos os primeiros Manuscritos de Qumran. Esta foi
considerada a maior descoberta de manuscritos da época moderna e a mais
importante na região da Terra Santa. É certo que foi uma riqueza, mas também
provocou muitas polêmicas e certa confusão.
No segundo semestre de
2004, alguns destes manuscritos e objetos estiveram expostos no Rio de Janeiro
e depois em São Paulo. Ultimamente encontramos livros, publicações e
reportagens muito boas em jornais, revistas e sites na Internet, mas também
encontramos algumas publicações sensacionalistas e livros best sellers (como
os de M. Baigent e R. Leigh) ou o recente livro O Código Da Vinci, de
Dan Brown, também sensacionalista. Este tipo de publicação mais confunde que
informa. São obras de amadores, ignorando todo o trabalho feito e esquecendo a contribuição
e o bem que estes Manuscritos nos trouxeram.
Neste artigo
procuraremos apresentar de forma resumida o que são os Manuscritos de Qumran ou
do Mar Morto, a sua história, as polêmicas e a ajuda que trouxeram para a
tradução e interpretação dos livros do Antigo Testamento, e também para uma
melhor compreensão de muitos elementos que ajudaram na formação do Novo Testamento
e do Cristianismo.
1. Qumran
É o nome do lugar onde
foram encontrados os primeiros manuscritos numa gruta. Situa-se perto do Mar
Morto, em Israel. Em seguida foram encontradas novas grutas com outros
manuscritos e objetos, não só em Qumran, mas em toda a região do Mar Morto, e
por isso hoje se fala dos Manuscritos de Qumran ou do Mar Morto (ou do Deserto
de Judá). Foram localizados também os restos dos edifícios onde se reunia a
comunidade.
No ano 70 os romanos
destruíram o Templo de Jerusalém, destruindo também a cidade e Israel deixou de
existir como estado judaico (até 1948). Em seguida, os romanos conquistaram e
destruíram a comunidade de Qumran e depois tomaram a fortaleza de Massada,
localizada próximo a Qumran. E em 135 dC foi vencida a última resistência judaica.
Na época em que se
descobriram os primeiros Manuscritos a região estava sob dominação inglesa, em
seguida o território passou a fazer parte da Jordânia. Em 1948 Israel tornou-se
um estado independente, porém somente em 1967, com a guerra dos seis dias, é
que a região de Qumran e do Mar Morto passou a fazer parte do território de
Israel.
2. O que são os
Manuscritos?
Os manuscritos são
escritos, em couro ou papiros, em sua maioria na língua hebraica, e alguns
poucos em aramaico e grego, que foram encontrados nas 11 grutas. Alguns estavam
em bom estado e outros estavam bastante deteriorados com o tempo e as condições
onde foram guardados. Ao todo foram encontrados em torno de 800 documentos.
Alguns estudiosos sugerem que alguns manuscritos sejam cópias de livros
sagrados que os judeus do Templo esconderam ali, quando pressentiram que os
romanos destruiriam Jerusalém. Alguns são apenas fragmentos (pedaços) de
textos.
Em geral podemos dizer que
os Manuscritos encontrados se classificam assim:
1) Manuscritos bíblicos: estes textos são cópias fiéis que os habitantes da região de Qumran
(escribas) transcreveram dos livros do Antigo Testamento (cerca de 225
manuscritos). O Livro dos Salmos é que foi encontrado maior número de cópias, o
segundo é o Deuteronômio; o terceiro é Isaías (curiosamente são também estes os
três livros mais citados pelo NT). Somente dos livros de Ester e Neemias não
foi encontrada nenhuma cópia (veja relação no final).
2) Apócrifos:
Foram encontradas cópias de diversos livros que não entraram no cânon da Bíblia
Hebraica, exemplo: apócrifo do Gênesis, de Henoc, de Noé, de Lamec, do Livro
dos Jubileus, etc. É bom lembrar que na época em que foram escritos os
Manuscritos a lista (cânon) dos livros do AT ainda não tinha sido concluída,
embora já houvesse um certo consenso.
3) Comentários bíblicos: Foram encontrados muitos textos que eram comentários e interpretações
que a comunidade escreveu sobre os livros do AT. Estes comentários são
importantes para percebermos como uma comunidade judaica daquele tempo
interpretava os textos sagrados. Além disso encontramos muitas cópias de targums e midraxes rabínicos (estudos e interpretações).
4)
Livros da
Comunidade: A comunidade também
escreveu livros sobre a sua vida. São textos legais sobre a organização da
comunidade, livros e textos litúrgicos, poéticos, apocalípticos, escatológicos,
comerciais, etc. Os mais famosos são a Regra da Comunidade, o Rolo do Templo, o
Documento de Damasco, a Carta Halákica, a Regra da Guerra, etc. Foi encontrado
também um famoso Rolo de Cobre, um livro escrito em cobre. É um enigma, pois
contém o mapa onde estão escondidos cerca de 60 tesouros (mais de 200 toneladas
de ouro e prata), mas parece ser uma fantasia e jamais se encontrou qualquer
coisa.
Além dos Manuscritos
foi encontrada uma grande quantidade de outros materiais, importantes para o conhecimento
da comunidade, como: cerâmicas, moedas, objetos de trabalho, vestuários,
calçados, utensílios de cozinha e de trabalho, etc.
A data em que foram
escritos os Manuscritos gerou muita controvérsia. A hipótese de que sejam uma
farsa hoje está descartada. Os mesmos foram submetidos à análise com os métodos
mais modernos, como o Carbono 14, e hoje cientificamente se pode afirmar que os
mais antigos sejam do século III aC e os mais tardios não sejam depois do ano 68
dC.
3. Como foi a descoberta
dos Manuscritos:
Na primavera de 1947
três beduínos da tribo Ta’amireh, que cuidavam do seu rebanho, na
região de Qumran, se divertiam jogando pedras dentro das grutas. Um deles,
porém, ouviu um som estranho. Voltou sozinho de madrugada e descobriu entre
outras coisas, um vaso contendo manuscritos antigos. Os beduínos tentaram
vendê-los, quase sem sucesso. (Outra versão indica que foi um beduíno que em
busca de uma cabra perdida, que havia se refugiado em uma das grutas, fez as
primeiras descobertas). O certo é que os beduínos chegaram a um senhor chamado
Kando, que se converteu em intermediário para passar adiante os materiais
descobertos. Como pensavam que eram escritos em siríaco, os beduínos foram
encaminhados ao metropolita Mar Athanasius em Jerusalém, da Igreja Siro-jacobita
(interessante que o porteiro vendo aqueles beduínos malvestidos quase colocou
tudo a perder, mandando-os embora!). O metropolita comprou os manuscritos por
cerca de 100 dólares (tempos depois os vendeu nos USA por 250.000 dólares).
O metropolita
consultou Sukenik, um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém. A partir
disso, iniciou-se uma longa história em que a descoberta foi levada a sério, os
beduínos conseguiram novos manuscritos, porém devido à situação de conflito na
região, alguns desses manuscritos foram levados aos Estados Unidos.
Iniciaram-se também as escavações e novas buscas na região, coordenadas por G.
L. Harding (jordaniano) e pelo Pe. Roland de Vaux, da Escola Bíblica de
Jerusalém, que escavaram e estudaram o local, fazendo estudo da comunidade e em
várias expedições fizeram novas descobertas. Porém, os beduínos lembrando que
seus avós contavam a história de um caçador que havia seguido uma lebre numa
gruta, foram de novo os protagonistas e descobriam duas grutas (chamadas Gruta
4) onde foi encontrado o maior e melhor número de material (era o resto da
Biblioteca central da comunidade de Qumran).
Foi construído em
Jerusalém um local especial para colocar e proteger todo este material, o
chamado “Santuário do Livro”, em forma da tampa de uma jarra, semelhante àquela
em que foram encontrados os primeiros manuscritos. É onde hoje se encontra todo
o material que está sob a custódia do Museu de Jerusalém, hoje administrado pelo
Estado de Israel. Segundo J. Strugnell, cerca de quatro rolos devem estar
desaparecidos ou se perderam para sempre.
4. A Comunidade de
Qumran:
R. de Vaux e sua
equipe tentaram estudar quem foi esta comunidade que viveu ali e produziu todo
este material. Baseados nas escavações e também em historiadores da época como
Plínio - o Velho, Fílon e Flavio Josefo, chegou-se à conclusão que a comunidade
começou a ser povoada cerca de 700 anos antes de Cristo. Porém, somente uns 200
anos aC é que teve a organização como grupo essênico separado. Esta sofreu uma
forte destruição com o terremoto de 31 aC e depois deve ter ressurgido, até ser
destruída pelos romanos tendo seu fim por volta dos anos 100 dC. Alguns traços
desta comunidade:
a) Tinham uma forte vida comunitária, com normas para a
admissão, formação e vivência interna. Seguiam uma disciplina rígida, rezavam e
faziam penitência, tinham os bens praticamente em comum. Liam, interpretavam e
davam muita importância às Escrituras. Esperavam o fim dos tempos, onde eles,
os “filhos das luzes”, combateriam ao lado de Deus contra os “filhos das
trevas”;
b) A princípio parece que era uma comunidade constituída
somente de homens, porém nos cemitérios foram descobertas ossadas também de
mulheres (que podiam ser de visitantes ou familiares que vivam nas
proximidades);
c) Uma figura importante na comunidade era o Mestre da
Justiça;
d) Tinham uma forte expectativa messiânica, porém eram
dois os Messias esperados: um de linha mais política, seria o descendente de
David e o segundo seria o Messias Sacerdote, descendente de Aarão;
e) Seguiam um calendário de 364 dias.
O mais provável é que
esta comunidade fosse um grupo de essênios, em uma comunidade de mais ou menos 200
pessoas. Alguns poucos sugerem que poderiam ser saduceus, zelotes, etc.
5. O Novo
Testamento e Qumran
Surgiram várias
hipóteses indicando que alguns dos personagens do NT seriam provenientes de
Qumran ou tiveram contatos com esta comunidade. De fato, quem visita hoje
Qumran na recepção vê um filme que informa sobre um personagem que esteve na
comunidade, mas que foi expulso por não se adaptar à comunidade. Este
personagem é identificado como o Profeta João Batista. E se lermos os
evangelhos sinóticos vemos que os traços de João Batista (a radicalidade da sua
proposta) têm muito a ver com a comunidade de Qumran. Outros sugerem que Tiago
“irmão do Senhor” (cf. At 12,17; 15,13; Gl 1,19, etc.) pudesse ter ligações com
a comunidade e Robert Eisenman até chegou a afirmar que este Tiago seria o
Mestre da Justiça da comunidade. Nesses textos, segundo Eisenman, se falaria
dos primeiros cristãos e em particular emergiria na sua plena luz o contraste
que dividia a corrente de Tiago e aquela de Paulo. Encontramos também alguns
que até chegaram a sugerir que o Apóstolo Paulo viesse desta Comunidade (é bom lembrar
que o próprio Apóstolo Paulo várias vezes afirma seu passado como fariseu e
nunca como essênio).
É interessante ver o
paralelismo de certos termos com os escritos do NT. Um dos vocábulos que mais
chamou a atenção é “os muitos” ou “maioria” que encontramos em At 15,12 e em
2Cor 2,5-6 e no relato da Eucaristia de Mt 26,27-28; Mc 14,23-24; Lc 22,20. Em
Qumran encontramos o mesmo termo seja em relatos jurídicos e celebrativos.
Encontramos também
outras expressões como: “justiça de Deus”, “pobres em espírito”, “obras da
lei”, “Igreja /Assembleia de Deus”, “a sorte dos santos”, “o Senhor do céu e da
terra”, etc. que não são encontrados nos textos rabínicos da época.
Textos como 2Ts 2,7 “o
mistério da iniquidade”; o tema paulino da “justificação pela fé” (cf. Rm
3,21-24; Gl 2,16), a figura de Melquisedec lembrada na Carta aos Hebreus, a
expressão “ele será chamado Filho de Deus”
de Lc 1,35-37, entre outros, também são encontrados nos escritos Qumrânicos.
No entanto, se existem
paralelos, encontramos também divergências. E. Stauffer enumera pelo menos oito
pontos diferentes entre a comunidade de Qumran e as primeiras comunidades
cristãs:
1) um clericalismo maior em Qumran;
2) mais ritualismo e cerimônias;
3) o preceito de amar os filhos da luz e odiar os
filhos das trevas;
4) o militarismo e a preparação para a guerra
“apocalíptica”;
5) a supervalorização do calendário;
6) o caráter esotérico;
7) a expectativa dos dois Messias;
8) o relacionamento diverso com o Templo, com os
sacerdotes de Jerusalém e com a Lei.
6. Problemas com a
publicação dos Manuscritos
No início a Equipe
responsável pelo cuidado dos Manuscritos e pela sua divulgação e publicação era
constituída de um pequeno grupo, chefiada pelo Pe. de Vaux, da Escola Bíblica
de Jerusalém. Devemos recordar que muitos fatores atrapalharam o trabalho.
Basta lembrar que o território passou por mudanças políticas importantes:
Inglaterra, Jordânia e depois Israel. Houve dificuldade de recursos econômicos
e mesmo humanos (pessoas capazes de traduzir e interpretar os documentos).
Falta de recursos para a aquisição dos Manuscritos. Tudo isso fez com que,
passados 40
anos das primeiras
descobertas, muitos textos ainda não eram de conhecimento público. Surgiram
suspeitas sobre as descobertas e sobre os seus conteúdos, falou-se até em
conspiração. Mesmo entre os biblistas católicos e protestantes criou-se um mal-estar,
tanto que J. Fitzmyer qualificou como um “escândalo” esta demora. Era
inadmissível que documentos assim importantes ficassem em segredo, mas
praticamente sem razão, e que não fossem de domínio público.
É certo que devido à
falta de recursos, financeiros e humanos, a morte de R. de Vaux (que foi substituído
por J. Strugnell – inglês, presbiteriano e depois católico – já velho), houve
atraso nas traduções e publicações. Além disso, a Equipe queria publicar os
textos com uma interpretação que fosse unânime entre os diversos membros. Tudo
isso deu margem a inúmeras especulações.
Por isso na década de
90 houve uma mudança na Equipe, mais recursos e pessoas foram colocados à disposição
e assim hoje todos os Manuscritos já foram divulgados, pelo menos através de
fotografias. Hoje faltam somente uns poucos textos para serem publicados e
traduzidos. Em português temos a excelente obra publicada pela Vozes: Textos
de Qumran, de Florentino Garcia Martinez (tradução de Valmor da Silva), que
traz praticamente todos os textos já publicados.
7. Questões e polêmicas
com o Cristianismo
É certo que documentos
dessa importância e que têm algo a dizer sobre a própria comunidade de Qumran,
mas também sobre o judaísmo, o cristianismo e a própria cultura mundial, tendem
a causar polêmicas e divergências.
Vejamos as principais:
a) John Allegro:
Entre os membros da equipe havia um pesquisador chamado John Allegro, inglês
agnóstico. Devido a divergências com o grupo, ele se retirou fazendo fortes
acusações dizendo que a equipe estava escondendo documentos da Gruta 4. Segundo
ele, haviam manuscritos que poderiam prejudicar o Cristianismo e que havia uma conspiração
do Vaticano para impedir a divulgação dos mesmos. Ele mesmo se pôs a publicar
manuscritos por conta (e que depois se revelaram de péssima qualidade.
Strugnell fez cem páginas de notas de correções ao seu livro). Allegro atribui
as origens do Cristianismo aos efeitos de um alucinógeno. Quase na mesma
direção, está a interpretação de Bárbara A. Thiering que vê João Batista como o
Mestre da Justiça e Jesus como o Sacerdote Ímpio.
b) Textos do NT em Qumran? J.O’Callaghan, jesuíta espanhol, insistiu nos anos 70
que havia descoberto partes de textos do NT em Qumran na gruta 7 (nesta gruta
foram descobertos também textos escritos em grego). Segundo ele, seriam textos
de Marcos, Atos dos Apóstolos, Romanos, 1Timóteo, Tiago e 2Pedro. Esta hipótese
foi assumida também pelo alemão C. Thiede e fez sucesso, mas também logo foi
contestada. Primeiro, porque a grafia não é tão igual; segundo porque a 2Pedro
é colocada pela maioria dos biblistas como o último escrito do NT (portanto foi
escrita depois da destruição de Qumran); terceiro porque não foi encontrado
nenhum livro do NT, mas somente alguns fragmentos com textos parecidos; quarto
porque o material é muito fragmentado e não permite nenhuma hipótese segura. O
texto encontrado (7Q5) e que O’Callaghan supõe seja de Mc 6,52-53, e pode ser
traduzido assim: “porque [não] haviam compreendido o fato dos pães estando o
seu coração endurecido. Terminada a travessia chegaram ao território de Genesaré
e chegaram à terra. Apenas desceram...” O texto não fala de Jesus e poderia
muito bem se referir a um outro fato, com outro grupo, ainda que se pareça com
o texto de Marcos. Por isso, hoje se exclui a possibilidade que qualquer uma
das 11 grutas contenha algum texto da literatura cristã primitiva.
c) Jesus era de origem essênia? Alguns autores procuram comparar as práticas, os
costumes, as propostas entre Jesus e as primeiras comunidades cristãs com os
essênios e descobrem muitas semelhanças. Por isso, afirmam que o cristianismo
seria de origem essênia. Esta hipótese também é fraca, pois temos todos os
textos do NT que comprovam a origem judaica de Jesus na Galileia. Embora com
isso não se negue que alguns membros do grupo de Jesus possam ter tido ligações
com a comunidade de Qumran (João Batista e outros).
d) O caso do Messias assassinado ou que assassinou: Um dos textos que mais causou polêmicas foi 4Q285. O fragmento
estava em certa parte corrompido e foi passível de várias interpretações, por
isso não foi logo divulgado. Isso ajudou a aumentar as suspeitas. Os estudiosos
sugerem várias traduções: “E esses assassinaram (ou: assassinarão) o príncipe
da comunidade, o reben[to de Davi]”. O texto pode ser interpretado tanto no
passado como no futuro. Outros preferem: “O príncipe da comunidade o matará
(ou: o matou)”. Poderia também ser: “O príncipe da comunidade, o rebento
de Davi, o matará” ou: “matará o ímpio”. Tudo isso traz um certo
paralelo com o NT. Em 1991 R. Eisenman publicou um livro (à revelia do comitê e
desrespeitando até os direitos autorais) onde diz revelar textos inéditos, um
dos quais que falava da execução capital de um Messias e insiste que este
Messias seja Jesus e que por isso o texto não havia sido tornado público.
Poucos são os que aceitam esta hipótese, já que Eisenman optou pela tradução
menos segura. Em 1992, ele publica outro livro juntamente com M. Wise. Porém,
em seguida, Wise se retratou das interpretações feitas (cf. se pode ver na
apresentação da edição italiana feita por E. Jucci). No entanto, estas publicações
tiveram o mérito de tornar públicos muitos dos manuscritos que demoravam para
serem publicados.
Sobre os pontos acima,
é bom lembrar que eminentes estudiosos encarregados da publicação dos manuscritos
sempre afirmaram que, embora se encontrem muitos paralelos, não existe nada nos
textos que tenha ligação direta com o nascimento do Cristianismo na Galileia.
Também em nenhum dos textos se encontra o nome de Jesus. Segundo F. G. Martinez,
as últimas análises dos Manuscritos feitas com carbono 14, comprovam que os
mesmos são anteriores ao cristianismo e, portanto, “excluem definitivamente
as teorias de uma origem zelota ou judeu-cristã dos manuscritos”.
O que percebemos é que
alguns (como O’Callaghan) gostariam de ver em Qumran e no Mar Morto indícios de
Jesus e dos textos do Novo Testamento. Não precisamos disso para a
credibilidade da nossa fé. Outros, em outro extremo, querem fazer “provocações”
e sugerir que Jesus e o cristianismo tenham origens essênias. Nem isso está nos
Manuscritos. Jesus continua sendo de origem judaica e o cristianismo continua
com sua origem na Galileia. Embora seja verdade que o pensamento de Jesus
algumas vezes se aproximasse das ideias dos essênios, porém a prática de Jesus
e das primeiras comunidades se distanciava muito do extremismo deles.
8. A importância
dos Manuscritos
Os manuscritos de
Qumran e do Mar Morto foram, sem dúvida, a maior descoberta do milênio passado
para a crítica literária e para o estudo da Bíblia, pois voltamos a ter acesso
a cópias de textos bíblicos da época de Cristo e alguns até dos séculos II-III
aC. Tanto a religião judaica, como o cristianismo, foram duas religiões muito
perseguidas na história, por isso foi difícil preservar os originais ou cópias
antigas dos textos sagrados. Para se ter uma ideia, antes desta descoberta,
tínhamos a Bíblia Hebraica de Soncino do ano 1477; a Bíblia Rabínica (com
massora, isto é, anotações que os escribas faziam nas margens das
páginas copiadas) de 1518, já impressa com a descoberta de Gutenberg e a obra
de Jacob Ben Chayyion, o famoso textus recceptus de 1524/1525. Em 1929
surgiu a BHS, a Bíblia Hebraica de Kittel e P. Kahle, baseada no
Código de Leningrado de 1008. Então, estes manuscritos de Qumran e do Mar Morto
nos forneceram cópias com cerca de mil anos mais antigas dos livros do AT. Tudo
isso ajudou a corrigir e melhorar as traduções da Bíblia.
Para o mundo judaico,
além da contribuição bíblica, a descoberta abriu o caminho para o acesso a
manuscritos e materiais de dois mil anos, bem como as escavações e o
conhecimento de uma comunidade de um grupo judaico (os essênios), que
contribuem também para entender melhor a história dos últimos anos da
existência do estado de Israel (antes de ser destruído pelos romanos). E
proporcionou um grande conhecimento da literatura hebraica pré-cristã.
Para o cristianismo, a
maior importância está nas descobertas bíblicas, mas também em poder conhecer
melhor o ambiente, as estruturas, ideias do mundo judaico da época de Jesus e
de uma comunidade que tinha pontos em comum e pontos divergentes com o
cristianismo.
Porém, com J. C.
Vanderkam podemos afirmar: “Sustentando que o Jesus histórico era o Messias,
no itinerário que conduziu à época escatológica, os cristãos se colocaram muito
além em comparação com os essênios de Qumran, os quais esperavam que os seus
Messias viriam em um futuro imediato”.
Concluindo, podemos
dizer que tinha razão a afirmação do exegeta bíblico W. F. Albright quando
soube da descoberta dos Manuscritos: “Parabéns pela maior descoberta de
manuscritos dos tempos modernos”. E em outra ocasião: “É fácil de
perceber que esta nova descoberta revolucionará os estudos neotestamentários e
logo renderá superados os manuais que tratam do ambiente do NT e da crítica
textual e da interpretação do AT”.
Relação dos
Manuscritos bíblicos encontrados:
Gênesis 15 Salmos 36
Êxodo 17 Provérbios 2
Levítico 13 Jó 4
Números 8 Cântico dos
Cânticos 4
Deuteronômio 29 Rute 4
Josué 2 Lamentações 4
Juízes 3 Eclesiastes 3
1-2 Samuel 4 Ester 0
1-2 Reis 3 Daniel 8
Isaías 21 Esdras 1
Jeremias 6 Neemias 0
Ezequiel 6 1-2
Crônicas 1
12 Profetas 8
Também foram
encontradas cópias de alguns livros deuterocanônicos que não vieram a fazer
parte da Bíblia Hebraica: Tobias (4 cópias em aramaico e uma em hebraico);
Eclesiástico (alguns fragmentos); Carta de Jeremias = Baruc 6 (foi encontrada
uma cópia em grego); Salmo 151, que se encontra na LXX (uma cópia).
Bibliografia
DONNINI, D. Cristo
e Qumran. La chiave di un rapporto controverso. In: http://www.etanali.it/mar_morto/files/qumran.htm
EISENMAN, R. – WISE,
M. Manoscritti segreti di Qumran. Edizione italiana a cura di Elio Jucci
(Piemme, Asti 21994).
JUCCI, E. I
manoscritti ebraici di Qumran: A che punto siamo? in: http://dobc.unipv.it/SETH/achepunt.htm
JUCCI, E. Qumran. A
cinquant’anni dalla ricorrenza della scoperta dei manoscritti, in: http://dobc.unipv.it/SETH/qumran50.htm
MACKENZIE, J. L. Dicionário
Bíblico. Verbete: “Qumran”. (Paulus, São Paulo 72002).
MARTINEZ, F. G. Textos
de Qumran. Tradução de Valmor da Silva. (Vozes, Petrópolis 1995).
MOLINA, C. As
relíquias que o Mar Morto conservou por mais de 2 mil anos. (O Estado de S.
Paulo, 25/11/2004, Caderno 2, pg. D3).
VANDERKAM, J. C. Manoscritti
del Mar Morto. Il dibattito recente oltre le polemiche. (Città Nuova, Roma 21997).
OBS. Para a elaboração deste texto utilizei muito o livro
de James C. Vanderkam, que é atualmente membro da Equipe responsável pela
tradução e divulgação dos Manuscritos. Além disso, ele mesmo no seu livro –
parodiando Lucas – afirma que fez uma boa pesquisa para poder informar melhor
todos os fatos ocorridos desde a descoberta dos manuscritos até os dias atuais.
Esperamos que o livro seja publicado no Brasil.
Este texto está em: http://www.presbiteros.com.br/B%EDblia/Qumran%201.htm
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