Neste quarto domingo do Advento, retomamos um evangelho muitas vezes lido e repetido nas nossas liturgias: Lucas 1, 26- 38. É o relato de como o anjo Gabriel anunciou a Maria que ela estava grávida e seria a mãe de Jesus, o Salvador do mundo.
Quando, nos anos 80 do primeiro século, a comunidade do
evangelho escreveu este relato, o fez como midrash, isso é, comentário
em forma de narração, de um belo poema do profeta Sofonias (Sof 3, 14- 17). A
comunidade profética escreveu esse poema seis séculos antes da nossa era.
Naquela época, o povo de Judá via o seu país ser destruído pelos babilônios e a
própria fé entrava em crise profunda. O cativeiro era uma negação das promessas
de Deus. Era como hoje em dia as pessoas que dizem: fiz promessa, Deus vai me
proteger. E aí adoece ou até morre. Os salmos da época, como o 43, o 77 e o 80,
gritavam: Onde está Deus que não vê o que está acontecendo? Ele se esqueceu
da sua promessa? Abandonou o seu povo?
Naquela situação, a profecia de Sofonias fala de Jerusalém
como sendo uma moça pobre “filha de Sião”. E diz a ela: “Alegra-te. O Senhor
está contigo, está no meio de ti e em ti”. A esta pobre comunidade
impotente e invadida, Sofonias anuncia a restauração da vida e da aliança de
libertação em Deus (entre as tribos) e com Deus.
Alegra-te. O Senhor está contigo. São as mesmas palavras que o
anjo Gabriel retoma quase literalmente a Maria. Assim, Lucas afirma que Maria é
a nova “filha de Sião”. Ela representa a nova comunidade pobre que no meio da
sua impotência e da sua pobreza, é visitada pela graça (O Senhor está contigo).
Assim como Abraão e Sara, velhos e estéreis, foram chamados por Deus a
serem o início de um novo povo. Também Zacarias e Isabel, velhos e estéreis,
recebem do mesmo anjo Gabriel o anúncio do nascimento de João, o filho profeta.
Assim também, Maria representa a nova humanidade a quem Deus vem visitar e
tornar fecunda.
Gabriel é o mensageiro (em grego, anjo) que, conforme a
Bíblia, apareceu duas vezes ao profeta Daniel. No evangelho de Lucas, anuncia o
nascimento de João Batista e de Jesus. Em hebraico, Gabriel significa apenas
“homem de Deus”. Mais tarde, conforme o Corão, foi ele quem apareceu ao profeta
Muhamad (Maomé) e ditou a revelação islâmica. Ele sempre aparece em situações
de muita tribulação e angústia do povo pobre.
Quando o anjo promete que a Ruah Divina cobrirá Maria
com sua sombra, está recordando o Êxodo e a caminhada do povo hebreu no
deserto. O livro do Êxodo conta que, durante a caminhada no deserto, o povo se
dirigia a uma tenda vazia e uma nuvem escura cobria a tenda com a presença
divina. Ali na Shekiná, a tenda divina, Deus escutava os pedidos do povo
e os atendia, como Mãe a seus filhos e filhas. Agora a mesma sombra divina, que
cobria a tenda no deserto, desce sobre Maria. Ela é a nova tenda, o novo útero,
a partir do qual a nuvem da Divina Ruah vai gerar o Cristo.
Hoje, relemos este evangelho para reafirmar que a Ruah
Divina vem de novo com sua sombra cobrir as novas tendas da presença divina.
Somos nós estas novas tendas da presença divina que temos de lembrar ao mundo
que o projeto divino é contrário à sociedade do desvínculo e da indiferença
social. Hoje são as comunidades que dão a Maria um corpo social. Por obra do
Espírito Santo, geram para este mundo um novo Natal. Fazemos isso através da
amorosidade da vida, traduzida em solidariedade.
Estamos vivendo este Natal de 2020 mergulhados em uma
pandemia que, somente no Brasil, infectou quase dois milhões de pessoas e matou
180 mil. Em meio a essa tragédia, o vírus é instrumento de uma política
genocida para, literalmente, dizimar comunidades indígenas, quilombolas e
populações de periferia. Tudo se torna mais difícil porque não adianta culpar
apenas o presidente. Atrás dele, há uma elite escravagista e uma mídia
interesseira que se servem da loucura e irresponsabilidade dos políticos que
estão no poder para garantir seus privilégios. O pior de tudo é que em nome
de Jesus e gritando Deus acima de todos, católicos e evangélicos apoiam e
sustentam esta iniquidade.
Hoje, este evangelho que anuncia o nascimento de Jesus vem
nos dizer algumas coisas boas e outras desafiadoras. A boa é que o Senhor vem e
está em nós e no meio de nós. É fonte de libertação e de vida nova para nós e
para a humanidade. O aspecto desafiador é que é o nosso Deus vem, como
veio no Natal. Não vem como Deus poderoso para resolver tudo com milagre e
através do poder. Vem como pequenino e impotente.
Os evangelhos contam que, várias vezes, Pedro, os outros
apóstolos e mesmo João Batista na prisão cobravam de Jesus a postura de um
messias poderoso e que trouxesse ao mundo o julgamento de Deus. Até hoje, a
Igreja fala da imagem simbólica do Cristo glorioso, Senhor da história que virá
revestido de poder. Os cristãos das primeiras gerações se frustraram
porque esta manifestação gloriosa de Jesus não acontecia logo.
É melhor aceitarmos que o Natal acontece quando nos deixamos
engravidar deste novo modo de ser amor, na nossa vida pessoal, no nosso modo de
ser Igreja e de sermos cidadãos e cidadãs do mundo. Aí sim, vamos inundando o
mundo de Natal. Nos anos 80, na Argentina, Mercedes Sosa nos fazia ouvir a bela
Canción de cuña navideña:
Todos tan
alegres, llegó Navidad
y en mi rancho pobre, y en mi rancho pobre
tristeza sonó igual.
No llores mi niño, ya no llores más
que nadie se acuerda, que nadie se acuerda
que no tienes pan.
Allá en un pesebre, dicen que nació
un niñito rubio, rubio como el sol.
Dicen que es muy pobre, pobre como tú
destino de pobre, destino de pobre
destino de cruz.
Texto de Marcelo Barros
* Tradução
da Canção:
Todos tão felizes, o Natal chegou
e em meu pobre rancho, e em meu pobre rancho
a tristeza é a mesma.
Não chore meu filho, não chore mais
que ninguém se lembra, que ninguém se lembra
que você não tem pão.
Lá na manjedoura, dizem que ele nasceu
um menino loiro, loiro como o sol.
Dizem que ele é muito pobre, pobre como você
o destino do pobre, o destino do pobre
destino de cruz.
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