25º DOMINGO DO TEMPO COMUM: Marcos 9.30-37
Se, como escreveu Florbela Espanca, a poesia é o que pode condensar o
grito do mundo num único verso, há que se admitir que a literatura marcana é
uma obra poética por excelência: com um estilo raro, esta literatura condensa
em si arranjos de linguagem que se nos apresentam como janelas mediante as
quais entrevemos o mundo de um ângulo desconcertantemente novo e como espelho
no qual vemos, ainda que opacamente, os recônditos desconhecidos (ou evitados)
de nosso interior. O texto de hoje, Mc 9,30-37, é uma amostra do que lhes
antecipei acima.
“E, tendo partido dali, caminharam pela
Galileia, e não queria que alguém o soubesse…” (Mc 9,30).
O texto inicia-se com inegáveis vazios e ocultamentos geradores de
indeterminação, incontornável óbice a interpretações pretensamente
totalizantes: Jesus e seus discípulos partem do lugar em que estavam, mas não
se diz por que nem para quê; caminham Galileia adentro, mas quem saberá dizer
se ao léu ou decididos por um destino? O leitor, se quiser ler verdadeiramente
este trecho da literatura marcana, terá de levantar-se e partir com Jesus e
seus discípulos, sem a previsão de um lugar a chegar ou de um mapa pelo qual se
guiar. E mais: a peregrinação terá de ser feita em sigilo, longe dos olhares e
dos questionamentos, nas sombras da solidão.
À medida que se somavam os passos da caminhada, presságios de um tempo
lúgubre emanavam dos lábios de Jesus, como se ele fosse o oráculo de si para si
mesmo: Serei entregue nas mãos dos homens e matar-me-ão, e, uma vez morto,
ressuscitarei no terceiro dia (Mc 9,31). E de tanto que tais palavras
farpejavam seu coração sangrante, referia-se a si como se fosse um outro, Filho
do Homem, uma espécie de heterônimo capaz de dirimir a dor, a ponto de torná-la
dizível. Os discípulos, por sua vez, não compreendiam o lúgubre oráculo, e de
tanto que este era dardejante a seus corações, receavam interrogar Jesus. Sem
saber o que dizer – afinal, a quem poderiam dirigir-se: a Jesus ou a sua
criação heteronímica? –, deram-lhe a escuta e o silêncio, a presença e a
companhia.
Jesus e seus discípulos, não se sabe como nem por que, chegaram a
Cafarnaum. Há destinos que o coração reserva para si. Tão logo entram numa casa
não se sabe de quem, Jesus retoma a palavra. Desta vez, não para proferir um
oráculo, mas para fazer uma pergunta a seus discípulos: “Que estáveis vós
discutindo pelo caminho?” (Mc 9,33). Nós, reles leitores, acabamos de ser
tomados de surpresa. Até que adentrassem na casa, não sabíamos da conversação
pelo caminho.
Os discípulos não respondem a pergunta de Jesus, quedam-se calados,
emudecidos como as pedras do caminho. O silêncio é linguagem. Veem a pergunta
de Jesus como mero artifício retórico? Reputam-na indigna do esforço de que se
despende para eriçar a língua? Seja como for, dão-lhe o silêncio. Nada mais. E
não fosse o mexerico do narrador, estar-nos-ia vedado para sempre o que fora o
tema da discussão ocorrida no caminho, a saber: a pergunta por qual deles seria
o maior (Mc 9,34).
Ao que parece, Jesus perguntara-lhes o que há muito sabia. Tanto é que,
pelo que vemos, sua ação supõe o que fora mexericado pelo narrador. Assenta-se,
chama os doze discípulos para junto de si e, sem reprovar o tema da discussão,
esforça-se para saná-lo com uma resposta nada esperada: “Se alguém quiser ser o
primeiro, será o derradeiro de todos e o servo de todos” (Mc 9,35). Os
discípulos perguntam por quem seria o “maior”, mas Jesus nem toca nessa
palavra: fala é de “primeiro”, “derradeiro” e “servo”. Mais: a resposta de
Jesus é ambígua: às vezes, parece sugerir que a intenção de ser o primeiro será
punida com uma posição derradeira e com a servidão; outras vezes, parece
insinuar que o caminho para ser o primeiro é ter-se na conta de derradeiro e
servo. Jesus, o mestre das perguntas evasivas.
Devaneios completados, Jesus toma uma criança, põem-na entre os
discípulos e, tomando-a entre seus braços, diz-lhes: “Qualquer que receber uma
destas crianças em meu nome a mim me recebe; e qualquer que a mim me receber
recebe não a mim, mas ao que me enviou” (Mc 9,37). Há relação de sentido entre
esse gesto de Jesus e o que lhe precede? Com o arrazoado sobre o que haviam
discutido pelo caminho, não. Sim, contudo, se vemos esse gesto como
demonstração do amparo que Jesus desejara receber quando da proclamação do
lúgubre oráculo: ser acolhido entre os braços de alguém em cujo peito pudesse
chorar sua morte iminente. O Jesus que expulsa demônios e anda prenhe do poder
de Deus é o Jesus que se revela inelutavelmente possuído pelo lúgubre fantasma
da morte e carente de braços que lhe sejam berço aonde ir dormir o sono dos
indefesos.
Quem lhe cantará uma canção de ninar?
..
Texto do Kinno Cerqueira
fonte: cebi.org.br
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