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quinta-feira, 12 de setembro de 2024

A CATEQUESE COM CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E TRANSTORNOS DE COMPORTAMENTO

 

Não sou nenhuma "expert" no assunto e nem tenho estudos formais ou títulos acadêmicos na área, no entanto, ao longo da minha trajetória na catequese tive o desafio de ter em minhas turmas, crianças com deficiências e transtornos de comportamento.

Como “deficiência” vou tratar apenas aquelas consideradas Intelectuais ou Transtornos de Comportamento. As demais deficiências, consideradas físicas, não são impeditivas para que uma criança ou jovem frequente a catequese. Um cadeirante, surdo ou cego podem (e devem) ser incluídos nas turmas normais de catequese desde que se proporcione acessibilidade e recursos para a inclusão. Tal como qualquer escola, a Igreja deve se preocupar com a inclusão destes em seu meio, proporcionando rampas, acessibilidade nos ambientes, intérprete de libras, literatura em braille e o que se fizer necessário para acolhida destas pessoas.

Logo no meu segundo ano na catequese, recebi na minha turma de 1ª Etapa da Eucaristia, a "Maria", uma menina de 9 anos com deficiência de aprendizagem. Ela ainda não tinha leitura suficiente para acompanhar o restante da turma, era extremamente retraída e não interagia com o grupo. Baseado no que li e pesquisei depois, creio eu que ela tinha sintomas de Síndrome de Espectro Autista. A mãe me "avisou" que eu teria dificuldades com ela pois Maria "não aprendia como as outras crianças". E com Maria eu aprendi muito mais do que ensinei.

O primeiro desafio foram as demais crianças da turma. Havia uma certa "impaciência" ao lidar com a "demora" de Maria, tanto nas atividades (brincadeiras e atividades do encontro) quanto na aparente falta de interesse dela em tudo. Percebi que ela lia um pouco, mas num ritmo muito vagaroso e não conseguia interagir comigo quando me dirigia a ela. Tentando inserir Maria nas atividades de todos, eu me atrapalhei com isso e causei irritabilidade nos demais, que tinham que ficar "esperando" Maria e o encontro não fluía. Eram doze crianças apenas, mas ao invés de levar Maria ao mundo dos onze, eu trouxe os onze para o mundo de Maria. Deu para notar que isso não deu muito certo...

Comecei a ler a respeito do déficit de aprendizagem nas crianças e conversei bastante com a família de Maria para saber os hábitos dela e como ela interagia em casa com os outros. Isso me ajudou a entender muita coisa. Depois, resolvi "partilhar" meus problemas com as outras crianças. Num encontro onde Maria não estava, eu coloquei a eles as dificuldades da nossa menina, pedi que tivessem mais paciência com ela e pedi AJUDA para que nossos encontros não ficassem “parados” como eles achavam que estavam.

Não me surpreendi nada com as coisas que ouvi deles. As crianças têm uma visão muito diferente da dos adultos - que tem a propensão mais a compaixão do que exatamente à ação para mudar as coisas – e consegui com que se interessassem por uma mudança em nossos encontros. Falei sobre o que li a respeito da deficiência dela e da figura do “mediador”, que seria alguém que ficaria ajudando Maria a “interpretar” o nosso mundo de uma forma mais “individual” e menos coletiva do que quando eu falava com todos. Imediatamente uma menina que conhecia Maria - seus pais eram amigos e frequentava a mesma escola que ela - se ofereceu para ser a “ajudante” de Maria. E os demais se comprometeram a ter paciência e evitar comentários depreciativos às dificuldades dela, inclusive se revezando na ajuda quando necessário.

Difícil descrever como as coisas melhoraram a partir de então. Nossa pequena ajudante abria a Bíblia para a Maria no lugar certo, mostrava onde estávamos lendo e a ajudava nas atividades (coisa que eu mesma fazia e levava bem uns 15 minutos do encontro para “situar” a Maria). Outra coisa, as atividades de Maria eram diferentes dos demais e tinham um grau de dificuldade condizente com a capacidade cognitiva dela. Sim! É preciso se dar ao trabalho de criar atividades com mais imagens, menos leitura e de grau mais acessível e que Maria podia corresponder.

Claro que ainda havia muita coisa que eu não conseguia fazer, afinal, estava com ela apena uma hora e meia por semana, mas, Maria começou a interagir mais com o grupo. No ano seguinte experimentei dar a Maria uma função importante dentro do grupo: seria ela a coroar Nossa Senhora na pequena encenação que faríamos aos pais. Participou de todos os ensaios, mas, na hora de ir ao encontro, ela se recusou categoricamente. E ficamos sem a Maria na coroação, (tínhamos uma substituta claro) mas, exigimos mais do que ela poderia nos dar.

Maria ficou comigo nos três anos de catequese até chegar a Primeira Eucaristia. E devo dizer que neste último ano as dificuldades diminuíram bastante e a pertença ao grupo era tão boa que Maria nem parecia uma criança que precisava de recursos especiais.

Mas, não posso deixar de frisar alguns fatores que contribuíram para isso: Primeiro que minha turma ficou junta durante os três anos da catequese, ou seja, criamos laços e vínculos de amizade muito fortes. Segundo, a deficiência de Maria era de um grau leve, não havia, por exemplo, ataques de raiva ou irritabilidade nas mudanças de sua rotina e a família contribuiu imensamente para que eu pudesse ajudar a Maria, fornecendo sempre todas as informações necessárias. Visitei a família várias vezes, participamos de vários eventos na Igreja juntos, etc.

As leituras sobre o assunto fizeram, também, uma enorme diferença no meu “fazer catequese”. Nas leituras sobre o autismo o que vi foi que intervenções “conjuntas”, englobando psicoeducação, suporte e orientação de pais, terapia comportamental, fonoaudiologia, treinamento de habilidades sociais e medicação, ajudam na melhoria da qualidade de vida da criança, proporcionando melhor adaptação ao meio em que vive. E um fator bem interessante para nosso caso: a utilização do “mediador pedagógico”, alguém muito importante no tratamento e na adaptação da criança ao grupo, que funciona como elo entre o educador, os pais e a criança.

Esse mediador auxilia a criança nas atividades na salinha e em todos os outros ambientes (Igreja, celebrações, brincadeiras), mais ou menos como um “personal trainer”, mediando e ensinando as regras sociais, estimulando sua participação nos encontros, facilitando a interação dela com outras crianças, corrigindo rituais e comportamentos repetitivos e acalmando a criança em situações de irritabilidade e impulsividade. Obviamente que nem sempre pode ser uma outra criança do grupo, a não ser que também faça parte do círculo familiar/social da criança. Esse mediador pode ser um irmão, um dos pais, enfim, alguém que esteja disposto a tal tarefa. Se o catequista quiser também exercer esta função no grupo, onde as demais crianças não tenham dificuldades, já antecipo que não vai conseguir fazer. A não ser que o grupo seja de 4 ou 5 crianças somente.

Maria me despertou o interesse em entender mais este mundo tão restrito das crianças com dificuldades de aprendizagem e síndromes das mais diversas. Passei a ler bastante sobre o assunto e fiz serviço voluntário numa escola para crianças especiais. A escola atendia crianças com deficiências severas, tanto físicas quanto intelectuais, fiz isso durante quase quatro anos, o que me proporcionou conhecer a pedagoga especializada no assunto. É simplesmente imensurável o conhecimento que agreguei durante este tempo, estando na escola em contato com as crianças três vezes por semana, e convivendo com pedagogas da Educação especial.

Tendo conhecimento mais apurado das características de cada síndrome que causam as deficiências intelectuais nas crianças e os transtornos de comportamento, passei a ver com outros olhos, por exemplo, os casos relatados pelas catequistas de crianças de trato extremamente difícil, onde os pais usam o diagnóstico de “hiperatividade” - que são os casos mais comuns de síndromes em nossas crianças.

Ouso dizer que em muitos casos não é feito um diagnóstico clínico e trata-se apenas de uma percepção dos pais com relação a uma criança de difícil trato, cujos pais perderam o controle e os limites na educação desta criança.

A investigação do TDAH envolve detalhado estudo clínico por meio de avaliação com os pais, com a criança e a escola. E isso deve ser levado ao conhecimento de todas as pessoas que tem convívio constante com a criança; em nosso caso, do pároco, do catequista e da coordenação.

Todas as vezes que pais apresentaram este diagnóstico para explicar o comportamento social de seus filhos, é preciso pedir informações detalhadas sobre: o tratamento médico, psicológico e pedagógico da criança, se ela toma remédio, se faz terapia e quais as orientações para o trato da criança se ela vai ficar sozinha com o catequista. Assim como o diagnóstico de hiperatividade pode ser precoce, também pode estar subestimado e tratar-se de síndromes mais graves de transtorno de conduta.

A esse respeito tive uma experiência muito frustrante com uma criança diagnosticada com TDO – Transtorno Desafiador Opositor, que só foi confirmado pela mãe depois que a confrontei com as dificuldades que estava tendo com ele na catequese.

Apesar de ser uma criança de apenas nove anos, “José” tinha sérios transtornos de conduta, chegando a ser agressivo comigo várias vezes. Infelizmente este foi um caso em que não conseguimos levar a bom termo na catequese. Apesar das medicações pesadas, o menino além do TDO tinha várias condutas de esquizofrenia precoce. Nem vale a pena relatar o ano difícil que passei com minha turma de sete crianças, que em determinados momentos, José fazia parecer que eram trinta. Por fim ele agrediu outra criança num momento em que não havia um adulto por perto. A mãe desta criança fez boletim de ocorrência e tivemos muitos problemas na Igreja por conta disto. Para evitar outros dissabores, a mãe o levou para outra paróquia.

Hoje, eu considero impensável um catequista não procurar informações sobre os transtornos de comportamento, caso tenha uma criança com algum tipo de síndrome ou deficiência em suas turmas.

O primeiro passo é buscar interação com a família, fazendo-a ver que sem uma “parceria” com o catequista, a evangelização ficará comprometida quando não, impossível. Dependendo do caso, em que a criança tenha crises de irritabilidade, impaciência, choro, faz-se necessário incluir a família na catequese, fora do grupo de crianças. A inclusão neste caso, fica obviamente comprometida, mas, não temos na catequese como prever ou sanar casos de violência e bullying contra outras crianças. A realidade é que o catequista, raramente tem formação pedagógica na área de educação especial.

Com relação aos casos de severo comprometimento ocasionado por deficiência intelectual, onde a criança ou jovem não tenha condições para frequentar a catequese ou capacidade cognitiva para absorver o ensino da fé, ou seja, sua vontade não se manifeste de forma alguma e o interesse em receber os sacramentos seja exclusiva da família, vale a pena uma conversa com o pároco no sentido de proporcionar correta orientação aos pais.

Os sacramentos são parte da Iniciação à Vida Cristã, ou seja, fazem parte do processo catequético e não são um “fim” em si mesmos, exigem a participação litúrgica e a pertença à comunidade. Os pais, avós ou quem solicitar o sacramento, neste caso, devem ter a intenção de proporcionar à criança ou jovem, condições de ter esta participação e essa pertença. A catequese, neste caso, é feita em família e dentro das condições que a criança ou jovem tenha de entender o que está sendo requerido dela.

Como catequista, o que me faz agir e pensar sempre será o respeito pela dignidade da pessoa e ao amor por todos os seres. Tenho consciência de que o “sagrado” é, e será sempre, uma percepção humana feita pela fé e pela razão também. Vale aqui então, respeitarmos cada criança e cada jovem por aquilo que ele É e é capaz de fazer e entender. Muitas vezes, queremos infligir às crianças deficientes intelectuais, ações que elas são incapazes de entender. Não creio que Deus castigará a quem quer que seja, se uma criança não receber a eucaristia ou a crisma pelo fato de não fazer parte do mundo dela estes preceitos. A maioria dos deficientes intelectuais, quando tratados devidamente, são anjos encantadores, capazes de dispender gestos enormes de carinho e deles já é o Reino dos Céus por pura graça e misericórdia divina.

Essa opinião eu tenho desde que presenciei a “primeira” (e acho que última!) comunhão de uma menino de catorze anos, com deficiência cerebral. Ele foi praticamente arrastado pela mãe até o padre, recebeu a comunhão a força e o padre teve que segurar a boca do menino para que ele não cuspisse a hóstia. Não vi felicidade, alegria ou o que quer que seja nesta criança, exceto uma enorme contrariedade pela invasão ao seu “querer” e a mudança de sua rotina. Fizemos a vontade da avó e da mãe e desrespeitamos enormemente uma criança doce e carinhosa que se viu exposta ao escrutínio público e a julgamentos e preocupações preconceituosas a respeito do valor da “Eucaristia”.

Cuidemos catequistas, da nossa formação, não só para sabermos tratar a catequese com deficientes, como também para nos abstermos dela quando nos julgamos incapazes de levá-la da maneira certa.

Angela Rocha

Catequistas – Graduada em teologia pela PUCPR.

 Sugestão de Leituras:

Catequese inclusiva: Da acolhida na comunidade à vivência da fé.  Thaís Rufatto dos Santos. Edições Paulinas, 2013.

Iniciação à vida cristã: Eucaristia - catequese inclusiva. Thaís Rufatto dos Santos. Edições Paulinas, 2018.

Psicopedagogia Catequética: Reflexões e vivências para uma catequese inclusiva - Vol.5 - Pessoa com deficiência. Eduardo Calandro, Jordelio Siles Ledo, Rozeangela G. Barbosa. Editora Paulus, 2022.

Catequese Junto à Pessoa com Deficiência Mental.  Por Ana Sirlei P. Vinhal, Lucy Angela C. Freitas. Paulus, 2008.


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VOLUME III

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