23º DOMINGO DO TEMPO COMUM - Marcos 7.31-37
Quando leio os Evangelhos gosto de pensar nos rostos, nos corpos que se
juntavam em torno da fé em Jesus, nos primeiros séculos da era cristã. Quais
memórias animavam àquelas pessoas, quais seus medos, quais suas dúvidas em meio
as turbulências sociais e existenciais daqueles tempos? Como lidavam com as
diferenças?
A comunidade de Marcos nos faz imaginar a diversidade cultural e
religiosa que a constituía, sendo um grupo majoritariamente não judeu. Os
conflitos entre judeus e gentios era um desafio para o cristianismo originário.
Não foi diferente na comunidade de Marcos, e suas narrativas demonstram
tais conflitos onde os judeus queriam impor seus costumes para os cristãos. Por
isso neste evangelho o rosto de Jesus vai se desenhando com as cores da
diversidade e a mistura de raças presente nas sociedades humanas.
No capítulo 7 o texto apresenta as andanças de Jesus, indo para além de
suas terras e de sua cultura. A narrativa de Marcos nos mostra a geografia do
Mestre caminhando em territórios estrangeiros, indo para além do Mar da
Galiléia.
Nestas andanças encontra-se com os Fariseus e doutores da lei, seus
conterrâneos, um povo limpinho e anti-séptico, que seguiam seus rituais à risca
e se orgulhavam disso. Rituais propícios aos nossos dias em tempos de pandemia.
Porém, rituais que aprisionavam e oprimiam o povo, ao invés de propiciar vida
com dignidade. Esta experiência rememorada pelas comunidades demonstra o
desprendimento de Jesus com os costumes do seu povo, desafiando as tradições,
não se importando com o fato de seus discípulos não respeitarem os rituais de
purificação do povo judeu. Na sua peregrinação, Jesus se mistura com outros
povos e vai se desconstruindo, e mesmo sendo judeu se permite comer sem lavar
as mãos pois, o que entra pela boca do ser humano é menos nocivo, do que aquilo
que sai da boca; é isso que pode tornar a pessoa impura. Neste debate sobre
pureza e impureza, Jesus quer ensinar o que de fato é mais importante para a
humanidade, matar a fome das pessoas ou se alimentar de rituais vazios?
A comunidade, através desta memória denuncia o apego a tradições que não
produzem vida e justiça para o povo e nos apresenta um Jesus que rompe com seus
costumes, se esses forem amarras para a liberdade do ser humano. Entretanto, o
mesmo Jesus nos pareceu bastante excludente no encontro com a Mulher
Siro-Fenícia, ao se recusar atendê-la por ser estrangeira, pois ele deveria
saciar primeiro os seus. Seria um tom de xenofobia do nosso queridinho Jesus?
Neste momento da narrativa Jesus é um homem judeu, talvez aliado ao ideal da
raça superior, daqueles privilegiados que já nascem no primeiro lugar da fila,
sendo judeu ele está conectado com sua tradição. Porém, ao ser interpelado
pelas palavras da mulher estrangeira, seus ouvidos se abrem e ele ouve o grito dos
excluídos daquela sociedade, a qual ele fazia parte.
A palavra de uma Mulher grega converte Jesus, pois descortina seu
privilégio e o salva das suas próprias amarras culturais e, quando se encontra
com o homem surdo e gago no seu caminho (31-37), novamente em contato com os
excluídos do sistema, Jesus faz algo inusitado. Ao ficar sozinho com o homem
coloca saliva em sua boca, ato impensado para seus costumes e para os rituais
de limpeza do seu povo. O Jesus que encontrou com os judeus no inicio do
capítulo, não é mais o mesmo no encontro com o homem surdo, porque antes ele se
encontrou com uma mulher que o desafiou assumir a diversidade e a diferença
como projeto de Reino, onde seu movimento claramente rompe com a lei judaica e
traz luzes para novas relações humanas, baseadas no respeito e aceitação das
diferenças e diversidades.
A palavrinha mágica que Jesus usou foi “Efatá!”. Abra-se! e logo houve a
cura da surdez e fala daquele homem. Jesus abriu-se para ouvir a mulher, pediu
para que o povo ouvissem suas palavras e ao final abriu os ouvidos do surdo,
deixando a todos e todas maravilhados. No entanto ele sente vontade de não ser
visto, não quis ficar para uma selfie, não quis postar nas redes sociais,
apenas aprendia ao se misturar com gentes de todas as classes, gênero e etnia.
O capítulo termina dizendo que tudo que Jesus fazia era bom, faz o surdo ouvir
e o mudo falar. Para que Jesus pudesse fazer o que era bom, foi preciso se
abrir para o aprendizado que não se encontrava no sistema religioso da sua
época, mas sim nas suas peregrinações em contato com as gentes, com seus
cheiros, seus sabores. Jesus abriu-se para aprender enquanto conhecia homens e
mulheres com suas fragilidades e potencialidades.
Em tempos de tanta perseguição, a comunidade de Marcos nos ajuda a olhar
com os olhos de Jesus e nos ensina acolher e aceitar as diferenças, e também a
denunciar sistemas opressores e excludentes que não produzem vida e liberdade.
Também somos convidadas a acolher nossas fragilidades, educar nosso ego, nos prostrar
aos pés do Mestre se for preciso e nos convertermos como Jesus também se
converteu, mudou seu caminho, seu olhar, sua postura e nos propôs uma utopia
que até hoje nos faz caminhar. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça! Ouça o grito
dos excluídos e das excluídas, se abra ao diferente e evolua sua humanidade.
Texto de Lilian Sarat
Fonte: cebi.org.br
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