Um texto excelente, divulgado na 3ª Semana Brasileira de Catequese de 2009, a respeito de Antropologia e Catequese. Vale a pena uma leitura atenta, principalmente para esclarecer algumas dúvidas a respeito das teorias Creacionista e Evolucionista.
ANTROPOLOGIA
TEOLÓGICA E CATEQUESE
Irmão Nery
fsc *
1.
Origem e evolução da Antropologia
A Antropologia
(anthropos = homem, ser humano; Logos = estudo, tratado) surgiu com o filósofo
grego Heródoto, no século V a.C. Por ser o primeiro, pelo que se sabe, a tratar
sistematicamente do tema é considerado o pai da Antropologia. Ao longo da
história, porém, esta ciência passou por grandes mudanças, gerando várias
correntes. Destacamos três delas:
a)
A Antropologia Filosófica pagã, mas aberta ao transcendente. Os filósofos antigos buscavam a autonomia da razão,
mas não desprezavam ou negavam a possibilidade da existência de divindades e
até as levavam em conta, chegando até mesmo à divinização do cosmos.
b)
A Antropologia Teológica (de índole judaico-cristã). É a que estuda o ser humano (Anthropos) tendo como referência
fundamental Deus (Theos). Passou-se
da centralização no cosmo divinizado (fase
pagã) para Deus, quando o cristianismo suplantou a visão grega da realidade
e colocou tudo o que existe na relação com o Deus revelado (fase cristã). A Antropologia teológica
trabalha sobre a profundidade do ser: origem e fim, riquezas e limites,
aspirações e linguagem, comportamentos, mas à luz da revelação divina. Visa-se
chegar a algo fundamental: o ser humano é capaz de Deus, de acolhê-lo, conviver
com ele, em comunhão e parceria com ele (cf. Catecismo da Igreja Católica – nºs 27-73).
Há
um pressuposto para esta vertente da Antropologia: Deus não é uma fantasia ou
um agregado mental na vida humana. Ele integra a própria estrutura humana e lhe
confere a vocação transcendente, que impulsiona o ser humano a ir além de si, a
aspirar ao infinito, a reconhecer suas limitações (fraqueza, enfermidade,
erros, morte, pecado), que o desafiam a respeito do sentido da vida, do
sofrimento, da morte e da pós-morte. Deus lhe dá ao ser humano a capacidade de
reconhecer o valor de tudo o que existe e de transcender à realidade do
aqui-agora, por um valor maior e mais plenificador. É exatamente esta busca do
transcendente que ele humaniza de modo maravilhoso a si mesmo como ser humano (o
humanum), isto é, quanto mais ele se
insere em Deus e no Projeto dele, mais encontra a felicidade. E é esta
extraordinária capacidade que o faz, também, humanizar tudo no cosmos,
estudá-lo, manipulá-lo e canalizar todas as suas riquezas em vista da
felicidade, um desejo insaciável que faz parte de seu ser como gente.
Aos poucos apareceram dois princípios
estruturais na antropologia teológica: o arquitetônico e o hermenêutico. O arquitetônico como eixo do ordenamento
de todos os eventos da história da salvação em função de um Plano que Deus tem para
a história do cosmos, da terra e da humanidade: é o Plano Salvífico. O hermenêutico como portador da verdade
primária sob cuja luz a teologia procura compreender e interpretar e interligar
os aspectos da história da salvação. Todos os grandes pensadores do
cristianismo colaboraram com o desenvolvimento da antropologia teológica, vista
no seu todo.
c)
A Antropologia Filosófica Secularista realiza a mudança da
centralização em Deus para a centralização no homem, mas sem Deus. Este passo
ocorreu na época moderna em conseqüência da secularização e do ateísmo, este
último desenvolvido no seio da filosofia européia e, especialmente, pelo
comunismo. Para os filósofos secularistas, mas este vertente tem seus inícios
já no Renascimento (século XVI), Deus desaparece de cena e cede lugar ao homem.
O espírito humano abre-se a um novo modo de ver e agir. Dá-se um violento
contraste com o modo precedente de entender todas as coisas e acontecimentos,
que tinha Deus como centro de tudo e de todo interesse humano, e passa a assumir
o homem como centro de tudo. Acontece, portanto, a passagem do teocentrismo para o antropocentrismo. Os
mais importantes filósofos dessa virada histórica do modo de pensar o sentido e
a razão de ser do ser humanos são Descartes, Hume, Spinosa, Hobbes, Kant. Mas é
Immanuel Kant, sem dúvida, quem atinge o ápice do pensamento independente da
referência a Deus, à religião, ao afirmar que o homem não é mais simplesmente o
ponto de partida, mas também o ponto de chegada da reflexão filosófica e de
toda a história. É ele que abre as possibilidades para que dali em diante
muitos filósofos dêem continuidade, aprofundem e motivem levar à prática o
secularismo ateu.
2.1
– Sempre em busca. Não há dúvida – e o dia-a-dia o comprova – a humanidade
continua sua busca do sentido da vida e da história, do sentido da existência
do cosmos e de tudo o que nele existe, especialmente do próprio ser humano na
complexidade da história do cosmos. Multiplicam-se sem cessar artigos, livros,
filmes, canções, obras de arte, que alimentam o debate levando-se em conta a
existência de Deus nesta trama misteriosa do mundo e da vida humana ou negando-a,
ridicularizando-a e considerando toda e qualquer religião como uma invenção prejudicial
ao ser humano.
A Igreja cristã, porém, continua firme
em sua fé e em sua missão, afirmando que o mistério do ser humano só encontra
sua verdadeira explicação e compreensão no mistério do Verbo encarnado, isto é,
no Filho de Deus que assumiu a condição humana na história com o nome de Jesus de Nazaré (cf. GS 22). Para a
Igreja o referencial “Adama” (homem e mulher), portanto, é o ser humano [1]
criado à imagem e semelhança do próprio Deus (mistério da criação). Este ser
humano, no uso de sua liberdade, assim o ensina a Igreja, rompeu com o seu
Criador (pecado original), Deus, porém, não somente não o abandonou, mas deixou
plasmado na natureza própria do ser humano a necessidade de Deus e o impulso
natural para buscá-lo. E ele concedeu à liberdade humana a graça do chamado
incessante para restabelecer a união homem-Deus, Deus-homem. Depois de
manifestar-se de muitos modos ao longo da história, quando chegou à plenitude
do tempo, na linguagem bíblica, Deus deu-lhe a maior prova de amor, o seu próprio
Filho divino em forma humana (cf. Hb 1, 1; 1Jo 4, 9-10), que viveu entre nós
com plenitude humana, como o ser humano perfeito, por ser ao mesmo tempo “verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem”.
Portanto, assim crê a Igreja, é pelo
Cristo que o ser humano é “justificado” (recupera a justiça perdida pelo
pecado). E é a partir dele, nele, com ele e por ele, que o ser humano vive da
graça do Pai, do Filho e do Espírito Santo: filiação (ao Pai),
fraternidade-amizade (do, no e pelo Filho), inabitação (no Espírito Santo). É
em direção a Cristo, o referencial humano-divino que, na liberdade, o ser
humano procura alcançar progressivamente e com o impulso da graça que ele nos
alcançou, “o estado adulto, a estatura de Cristo em sua plenitude” (Ef. 4,13). É
este o cerne da Antropologia teológica cristã.
É a partir
do olhar antropológico-teológico que detectamos o que a Revelação diz sobre o ser
humano no contexto da obra da criação: uma criatura feita no tempo e que não
teve existência espiritual antes da corpórea para usufruir da felicidade neste
mundo e da glória de Deus na vida eterna feliz. Os textos bíblicos não
pretendem apresentar dados científicos, mas mostrar o propósito de Deus, no
relacionamento dele com os homens e, mais ainda, a sua experiência no mundo
como ser humano em Jesus
Cristo e, consequentemente, a identidade profunda e única do
especificamente humano assim enriquecido com a comunhão com Deus e que abre o
ser humano definitivamente e de modo privilegiado para a comunhão consigo
mesmo, com os outros, com a natureza.
Este mesmo
olhar de comunhão, assim plena, considera o homem como “imagem e semelhança de
Deus” e tem a Jesus como a imagem verdadeira do Pai, e nós, como seu reflexo. E
o ser humano como “imagem de Deus” (imago Dei), carrega em si mesmo as
marcas do Criador, do Filho Redentor e do Espírito Santificador, principalmente
em sua a capacidade de conhecer e amar o Pai, por meio de Filho, no amor do
Espírito Santo e como co-criador e cooperado em seu Plano de Amor sobre
o mundo e a humanidade.
Expliquemos
um pouco, mas com os termos em hebraico, grego, letim e português, esta visão
trinitária da pessoa humana, segundo a visão hebraica e que Paulo utiliza na
carta aos Tessalonicenses: a) Corpo (bâsar,
sarx, caro = corpo de carne) é a nossa realidade fisica, biológica); b) Alma
(nephesh, psychè, anima = dimensão
psíquica, afetiva, intelectiva, colitiva, relacional) é a dimensão vital
similar a de todos os demais seres vivos, mas que possui em si, a diferença da
dimensão da auto-consciência, do afeto-relacionamento, da liberdade, da
vontade, do senso ético, da busca do bem, do belo, da verdade e da felicidade;
c) Espírito (ruach, pneuma, spiritus =
dimensão transcentente espiritual), é a dimensão exclusiva do ser humano, fruto
da criação direta de Deus (sopro-ruach,
ser vivente em Deus e para Deus [2]),
que assegura a possibilidade de comunicação e comunhão dom Deus.
Esta
reflexão é importante porque houve, na história do cristianismo, confusão entre
os intérpretes e estudiosos, alguns afirmando que Paulo tinha uma visão tricotômica
do ser humano, isto é, um composto de três partes separáveis, enquanto outros
defendiam a concepção dualista de corpo e alma. Na concepção hebraica as três
realidades se apresentam como dimensões autônomas, porém, formando uma unidade,
um todo. O refinamento da reflexão concluiu que a alma e o espírito são imortais,
ao passo que o corpo é corruptível, mas destinado à ressurreição, mesmo que de
forma espiritualizada, segundo a convicção cristã.
E como
surgiu a visão do dualismo corpo e alma? Na reflexão tradicional e oficial da
Igreja cristã, o predomínio da cultura greco latina na teologia fez acontecer uma
fusão entre “alma e espírito”, por mais que muitas vezes apareçam distintas. Com
isso, quando, portanto, em teologia se fala em “alma”, entende-se por (ruach, pneuma, spiritus-espírito). É,
porém, preciso deixar sempre esclarecido, que no dualismo cristão do ser humano
como corpo e alma, obviamente está subentendida
a visão trinitária, pois se faz uma clara distinção entre nephesh-psychè-anima (alma) e ruach-pneuma-spíritus,
isto é, o sopro de Deus (espírito), que, porém, só é aceitável em nivel de fé
revelada. É exatamente aqui que se destaca ainda mais a unidade na dualidade entre
corpo, alma (incluindo o espírito), ao contrário da concepção maniqueísta que
ensina a docotomia estraguladora do ser humano, ao colocar, como na filosofia
de Platão, o corpo como uma prisão da alma, e que, portanto, o espírito (ruach-pneuma-spiritus) está, também ele,
encarcerado no corpo humano e dele precisa se libertar e, mais ainda, diz o
maniqueísmo, porque o corpo é obra do deus demônio, e por isso, deve ser
desprezado e massacrado, sobretudo, em sua realidade sexual.
A discurso
filosófico e teológico sobre a estrutura antropológica cristã tradicional do
ser humano se plasmou nos escritos de são Tomás de Aquino. Ele, a partir do
dualismo clássico, não se fecha na cultura grega e diz que a alma (no sentido
de nephesh-psychè-ánima e, também, de
ruach-pneuma-spiritus) é a “forma” do
corpo, podendo subsistir sem a matéria corporal, pois mantém sua operação
intelectiva apreendida mediante a operação sensorial, portanto do corpo vivo.
Para ele, porém, o ser humano é um todo unificado, prejudicado, porém, em sua
harmonia pelo pecado.
Os
documentos do Magistério da Igreja afirmam que a alma é espiritual e dotado de imortalidade.
Ora, se a alma é espiritual, não pode ser corrompida, pois sendo espírito,
dotado de existência própria, autônoma e independente da matéria, não se
extingue com a corrupção do corpo. Aqui, mas sem a explicitação que deveria
existir, está se falando da ruach,
portanto, do espírito humano no sentido espiritual, mas que só é aceitável,
como já aludimos acima, para quem tem o dom da fé revelada. E este é um dos
importantes diferenciais da fé cristã, qaunto à antropologia, em relação a
todas as demais religiões e filosofias.
2.3 Homem e a Mulher. Segundo o dogma da
criação, Deus criou o homem e a mulher à sua “imagem e semelhança”, com aptidão
para a vida na graça e com dons, talentos, tendências e capacidades para
cooperar no desenvolvimento deles mesmos até alcançar a plenitude deste
crescimento pessoal e social e, também, para trabalharem no desenvolvimento e
aperfeiçoamento do cosmos, primeiramente garantindo a continuidade de novos
seres humanos na história. Deus, segundo a fé cristã, ao fazer o mundo com tudo
o que ele encerra, deu a todos os seres a capacidade de se prepetuarem na
história e se aperfeiçoarem. Ao homem e à mulher, também ele deu a missão de
perpetuar a espécie, usando para isso, como os demais seres, a sexualidade e a genitalidade.
A diferença, porém, é que eles não usam apenas na força do instinto, mas de um
dom especial, denominado amor, que abrange, como natural e sagrado, o plano
carnal, mas que, ao mesmo tempo o ultrapassa, de modo a expressar uma
vinculação e complementação profunda dos dois, numa dimensão espiritual radical
de amor, que lhes dá força para enfrentar tudo o que vier a acontecer com eles
e os filhos. Homem e mulher, no plano da criação, são seres iguais e
complementares: iguais e dênticos quanto
à natureza, e complementares quanto
às particularidades físicas e psicológicas. Realizam-se humanamente e santificam-se
mutuamente dentro dos princíopios da ética e das leis da moral. A ambos foi
confiada a responsaabilidade pela realização do Plano de Deus na história.
A fé
revelada diz que ambos têm igual dignidade, embora no Antigo Testamento, dentro
das limitações da evolução da consciência e da praxis humana naquela época, a
mulher tenha tido sua participação restringida na família, sociedade e na
religião, o que imcompreensivelmente ainda perdura em muitas partes do mundo e
nas religões todas, inclusiva na cristã. No Novo Testamento, essa situação tem
tudo para ser mudada a partir do fato de Jesus ter aberto espaço para a mulher
e, também por Deus ter dado um destaque todo especial a Maria de Nazaré, Mãe do
Senhor Jesus, na história da salvação. A Igreja cristã, porém, deixou-se
dominar pela ideologia machista do judaísmo do qual brotou e, também, da
cultura greco-romana na qual se inseriu, e isso perdura até hoje. Ela não
assumiu realmente a “igualdade da dignidade humana entre homem e mulher”, restando-lhe,
portanto, uma dívida história, que ainda está longe de ser solucionada.
A Igreja
cristã ensina que a sexualidade-genitalidade humana encontra sua perfeita
orientação e canalização no matrimônio monogâmico indissolúvel, destinado à
complementação mútua no amor conjugal e familiar e à procriação da espécie para
perpetuá-la no mundo. E ela colocou o matrimônio como um Sacramento, isto é,
como minifestação visível da indissolúvel união de amor, isto é, da berith-diatheke = aliança esponsal de
Deus com a humanidade, que alcança a sua manisfestão plena na “Nova e Eterna
Aliança”, estabelecida e selada por Jesus Cristo, com seu próprio sangue
derramado na cruz e sua vida dada em resgate por nós.
2.4 O mistério do mal: Pecado e Justiça Original.
A Antropologia teológica estuda, também, a
historicidade, fragilidade, finitude humana com base em dados bíblicos. Ela
explicita que o ser humano perdeu a justiça original (sua harmonia plena), quando
cometeu o pecado convencionalmente denominado de original. Para reconquistar
esse estado foi necessária a redenção, oferecida gratuitamente por Deus e
selada no mistério pascal de Jesus Cristo. Embora o ser humano recupere esse
estado original no Batismo, a teologia ensina que as conseqüências do pecado
original continuam a existir enquanto permanecemos neste mundo. Disso decorre
que todo ser humano não apenas deve ser constantemente vigilante para não
errar, mas, que ao pecar - pois isso acontece e sempre acontecerá -, ele tome
consciência e se levante, confiante na misericórida de Deus e no seu próprio esforço,
para continuar crescendo na fidelidade ao seu infinito amor de Pai e Mãe.
A doutrina
do pecado original é essencial para a fé cristã, mesmo que a teologia não
consiga dar-lhe uma explicação que satisfaça nossos questionamentos, já que se
trata de um mistério. Entretanto, deve-se distinguir entre o pecado das origens
e o estado de pecado no qual nasce cada ser humano. A Igreja cristã analisando
a história concluiu que a humanidade vive mergulhada num caos tão grande, que
deve ter havido algum acontecimento que o tenha causado, mesmo que alguns
escritores digam que o relato do pecado original seja apenas simbólico. De
qualquer modo, o relato não foi inventado e traz em si uma mensagem revelada de
grande importância. Ele foi apresentado e continua sendo apresentado como “o
tipo” do pecado, pelo qual teria o ser humano começado a utilizar a liberdade
para se tornar autônomo e independente em relação a Deus, fazendo-se a si mesmo
um absoluto. Deste modo, com o pecado de um ou de alguns, todos pecaram e estão
na condição de pecadores. A participação dos descendentes no “pecado de Adão e
Eva” se dá, portanto, pela “solidariedade” universal dos próprios seres humanos
como corresponsáveis pela instalação do mal no mundo e por sua continuidade ao
longo da história.
2.5 Creacionismo, evolucionismo... O Magistério da Igreja
não nega o evolucionismo ou a evolução do ser humano - homem e mulher - ao
longo da histórica dos cosmos, especialmente da terra. Ele o admite, porém, desde
que a partir do criacionismo, isto é, da ação direta de Deus, na criação do ser
humano. Não há aqui contradição alguma com a ciência, mas uma complementação
por meio da fé revelada. A Igreja se fundamenta na Sagrada Escritura e acena para
essa possibilidade, na parábola que explica para o povo daquele época a necessária
intervenção de Deus na criação explícita e diferenciada do homem e da mulher em
comparação com todas as demais criaturas (cf. Gn 1, 26-31; 2, 18-25). Deus, na
linguagem literária utilizada pelos escritores sagrados, modelou o homem e a
mulher, à semelhança do que faz um oleiro, a partir de materiais pré-existentes
na natureza que fora criada pelo próprio Deus e que o texto bíblico sintetiza
no termo “barro”, “limo”, “humus”. E há no relato o pormenor do “soprar de Deus”
(a ruach que sai de Deus) nas narinas
do futuro do ser, que passaria, por causa disso, a existir como ser humano, como
esta ruach, como o diferencial mais importante, conforme a o próprio dizer da Sagrada
Escritura. Deus-Criador é quem de imediato faz do nada, cria (bará) a alma
espiritual e imortal (ruach) em cada
homem, em cada mulher.
A criação do
ser humano, segundo a narrativa bíblica, é diferente dos outros seres porque
ele é“imagem de Deus” por motivo, entre outros, da “ruach” que recebe
diretamente de Deus. Os demais seres se reproduzem sozinhos, de maneira
natural, mas o homem e a mulher necessitam que Deus crie a alma-espírito e a
infunda na corporeidade humana. Este ato criador - assim a Igreja crê e ensina,
acontece no instante da concepção (da fusão espermatozóide-óvulo), já que a
vida do ser humano se inicia, segundo ensinamento da Igreja, neste preciso momento.
Há um outro
campo muito polêmico quanto à origem do ser humano. É a hipótese do poligenismo, isto é, do aparecimento de
diversos casais de um mesmo tronco originário e não de um único (revelado na
Bíblia como Ish (homem) e Ishaa (Mulher), do mesmo tronco Adama
(ser humano) [3].
O poligenismo é totalmente rejeitado pela Igreja por ser contrário à doutrina
do pecado original universal e, também, contrário à unidade da História da
Salvação. Mesmo assim, apesar de não aceito, há uma brecha de tolerância se se
considerar Adama, “ser humano”, como gênero humano, que depois evoluíu. E, para
a Igreja, em sua
Antropologa teológica, essa hipótese não contraria nem o
criacionismo e nem o evolucionismo, desde que haja um tronco único no começo da
criação do gênero humano na história, do qual o restante da humanidade partiu
em sua saga na história.
3.1 Agraça supoõe e aperfeiçoa a natureza humana. Escreve Santo Tomás de
Aquino que “a graça supõe a natureza” (Suma Th in I , 2,2 ad 1; IV, Lec 6) e
que ela não suprime a natureza humana, mas a aperfeiçoa (Suma Th I, 1, 8 C ). Ora, nossa fé tem por
dogma que o Filho de Deus assumiu a natureza humana, demonstrando, portanto, a
extrema valorização que dá a Santíssima Trindade ao ser humano, por ela mesma
criada. E, isso, apesar da ruptura com Deus que a liberdade humana fez
acontecer e continua fazendo acontecer. Sabemos que, no Plano amoroso de Deus
para redenção da humanidade o mistério da encarnação do Filho de Deus, tem
exatamente, como objetivo maior, ajudar o ser humano a optar pelo caminho da
salvação, isto é, da sanação da ruptura efetuada. A maravilha da redenção
realizada pelo mistério pascal de Jesus Cristo, e por todas as graças daí decorrentes,
atuam para aperfeiçoar a realidade frágil, histórica, limitada e pecadora da
natureza humana, que Deus quer participante de sua felicidade infinita, por
puro amor, gratuidade absoluta em querer partilhar seu ser e sua felicidade
conosco.
Ora, como consequência
dessa verdade e dessa convicção, para quem tem o dom da fé revelada nem poderia
haver o mínimo de menospreza pela natureza humana, tal qual é, ainda mais
depois da encarnação do Filho de Deus, por meio de Maria e da missão redentora
que ele realizou como gesto maior do amor de Deus para conosco. Por pior que
alguém se comporte, acumulando em si e fazendo acontecer a maldade, nada
justifica um mínimo de descaso, de desprezo por ele. Ao contrário, para quem
tem o dom da fé, tudo deve ser feito para colocar à disposição dele todos os
meios possíveis para que se recupere, se redima, se converta e passe a viver em
coerência com sua dignidade humana, enriquecida com a grade de ser filho ou
filha de Deus.
a) A importância de dar a necessária atenção à
natureza humana. A Palavra de Deus encarnada, Jesus Cristo, não apenas assumiu a natureza
humana, em tudo, menos o pecado, mas deu a máxima atenção à concreticidade do
ser humano em seu todo físico, psíquico, relacional, espiritual. E sua
experiência junto aos excluídos sociais o direcionou, mais e mais, ao logo da
vida a fazer por eles uma opção preferencial, radical, pois a situação em que
viviam em nada correspondia ao Plano divino de felicidade já aqui na terra para
cada pessoa humana.
Fica
difícil ou até mesmo impossível explicar, melhor ainda, justificar como no
decorrer dos dois mil anos do cristianismo tenha acontecido e crescido entre os
cristãos uma tão alienante visão da pessoa, mensagem e missão de Jesus Cristo,
retirando-lhe a corporeidade e inserção na história e, sobretudo, a opção
preferencial pelos pobres que ele viveu, de maneira tão concreta, e que se
tornou uma das suas marcas mais fortes. Os textos dos evangelhos são abundantes
nos relatos a respeito da atenção eficaz do Filho de Deus para com as pessoas
enfermas, famintas, prejudicadas por distúrbios psíquicas, por dramas pessoais,
pessoas excluídas da sociedade, consideradas publicamente como pecadoras,
vistas e rejeitadas como amaldiçoadas por Deus... É impressionante a
sensibilidade de Jesus tanto com as pequenas coisas em favor do ser humano, como
dar um copo de água, acolher e abençoar crianças, quanto também, com relação a
situações mais complicadas como a dos leprosos, epilépticos, enlouquecidos,
endemoniados. Mas ele não apenas fica no dado pessoal, pois há situações
sociais, religiosas e políticas que ele não aceita e, nisso, citamos como
exemplo, a sua atitude no Templo, profanado pelo negociantes, o tipo de vida e
de governo de Herodes que, numa demonstração de frouxidão extrema, manda matar
João Batista, este Herodes que avisa Jesus para sair do território dele, mas a
quem Jesus responde chamando-o por uma palavra terrivelmente ofensiva ao
governo e, portanto, passivel de duros castigos, por ser um desrespeito frontal
à autoridade civil: “ide dizer a esta raposa!”. Jesus não foi uma alienado
político nem religioso, já que seu objetivo neste mundo era lutar para fazer
acontecer a salvação plena do ser humano, isto é, para que pudesse viver feliz
aqui terra e na eternidade.
Um dos mais
impressionantes ensinamentos de Jesus, segundo a narrativa de Mateus é a plena
identificação que ele faz dos mais pobres com ele mesmo. É um ensinamento
difícil de se aceitar até hoje e um dos que menos os cristãos colocam em
prática: Vem, querido de meu Pai. Estive
com fome e me deste de comer, estive com sede e me deste de beber, estava
doente e cuidadeste de mim, estava no cárcere e me visistaste, não tinha onde
morar e me acolheste. Cada vez que fizeste isso a um dos mais sofridos seres
humanos foi a mim que o fizeste (cf. Mt 25. 31-46). Identificar Jesus e
atendê-lo na pequenez dos mais sofridos, pobres e excluídos é, sem dúvida, um
sinal claro da verdade da conversão do discípulado missionário. E, afinal de
contas, isso é, em verdade e realmente “fazer a vontade do Pai!” como Jesus viveu
e como ele quer que vivamos.
3. Catequese e realidade humana. Partir de realidade
humana (ver) é óbvio no modo de Jesus ser, ensinar, fazer. O episódio dos
Discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35) evidencia isso, logo no começo, quando Jesus
se soma aos dois caminhantes. Ele observa, escuta atentamente, interroga sobre
o sofrimento deles, sobre o que de tão grave acoteceu para deixá-los assim tão
abatidos e fazê-los desistir de tudo e fugir... Só depois de cuidar da realidade
humana dos dois discípulos, da situação social, política e religiosa deles é
que Jesus ousa dar sua opinião, iluminando tudo a partir das Escrituras
Sagradas, desde Moisés. Mas ele o faz com tal pedagogia que chega a atingir a
natureza humana integral dos dois, fazendo seus corações arderem,
mobilizando-os para a oração, para a eucaristia e para a missão. Durante sua
missão de ensinar ele está atento às pessoas e se sensibiliza com os
sofrimentos, de modo especial a fome e as doenças e as injustiças sociais. De
acordo com este olhar atento sobre as manifestações da natureza humana Jesus
adapta e incultura seu modo de ser e viver, sua mensagem e sua missão. Como
judeu não se enquadra na racionalidade dos argumentos, mas se interessa por
afeto, sensibilidade, relações humanas, sentimentos, amor, fraternidade,
serviço, cura, justiça.
Ora, é
impossível conseguir ajudar alguém a experimentar o alcance profundo e
transformador do encontro pessoal com Jesus Cristo vivo sem levar em conta a
densidade e fragilidade, a riqueza e pobreza da natureza humana, com tudo o que
ela é, reage, tem e faz, a exemplo de como Jesus fez. Ver a partir do olhar da
fé e com ajuda de todas as ciências a realidade humana, especialmente do
dia-a-dia de cada pessoa e do que a envolve não é apenas questão de pedagogia,
método; é parte integrante do processo de evangelização e catequese, liturgia e
pastoral. Antes mesmo de falar de Deus e dos ensinamentos da Igreja é preciso
cuidar do ser humano. E, hoje, isso se torna obrigatórico face à crise em que
se encontra a família, a responsabilidade dos pais, à crise educacional da
escola e ao desprezo tanto da ética e da moral,. Como da religião, de Deus e do
valor e sentido da vida em si, mormente da vida humana, fomentado em troca de
dinheiro por fortes grupos sociais, culturais e políticos. A catequese que não
dedica uma boa parte do começo do processo de Iniciação à Vida Cristã e de todo
o processo, à dimensão humana do catequizando, corre o sério risco de construir
a educação do discípulo missionário sobre areia, portanto, certamente fadado ao
desmoronamento. O mesmo ocorrerá se ela não preparar bem os catequizandos para
serem construtores de uma sociedade na qual se priorize a vida, a dignidade
humana, a justiça social, a fraternidade e a paz.
Concluindo
A
antropologia bíblica e teológica cristã, em sua complexa e maravilhosa união entre básâr, nephesh e ruach, integra
obrigatoriamente nossa vida e missão de discípulos missionários de Jesus
Cristo. O Concílio Vaticano II, especialmente mediante a Gaudim et Spes revoluciona a Igreja Católica quanto ao modo de
lidar com a concreticidade do ser humano como pessoa e como cultura, construtor
da mundo justo e solidário e como história. Mais que teoria, que tem em si seu
valor, o que interessa para nós cristãos é a questão da praxis, com o objetivo
de superar o fosso entre fé-vida, fé-cultura que predominou por tanto tempo em
nosso modo de ver, interpretar e viver a fé cristã, fosso que também acontece
em relação ao nosso modo de vivê-la pessoal, comunitária e socialmente.
A segunda
Conferência Episcopal dos Bispos de América Latina, em Medellín, deu um passo
gigantesco ao aplicar em nosso continente os ensinamentos da Bíblia e da Gaudium et Spes, mormente, pela ousada
eclesiologia inspirada na Comunidade Eclesial de Base, pela profetica maneira
de fazer e operacionalizar teologia a partir da incipiente mas esperançosa
Teologia da Libertação, pela encarnação e inculturação da fé na situação real
do povo e pela opção preferencial pelos pobres. Medellín, no capítulo sobre
catequese, diz que as situações verdadeiramente humanas fazem parte do conteúdo
da catequese (cf. Medellin, 8). E o Documento da CNBB Catequese Renovada, Oreintações e Conteúdo assume esta orientação
de Medellín e propõe a prática libertadora a partir do princípio metodológico
da interação fé-vida (CR 112-113; 116-117)
A catequese
dispõe, neste momento da história, das melhores orientaçoes da Igreja e da
experiência da base para realmente se renovar. E tanto o Diretório Geral da Catequese, o Diretório
Nacional de Catequese como o Documento
de Aparecida e o Estudo da CNBB Inciação
à Vida Crsitã estão aí à disposição para que demos continuidade ao processo
renovador e libertador que vem marcando a história da nossa Igreja em nosso
continente, mormente no Brasil. Os desafios hoje de um mundo cada vez mais
plural e de verdadeira e ampla mudança civilizacional estão a exigir de nós
esta coerência profética e martirial da conversão, da fundamentação e da práxis
em vista da salvação plena do ser humano, tanto em sua realidade humana aqui na
terra como para a vida eterna feliz no seio da Santíssima Trindade
QUESTÕES PARA O PROCESSO PARTICIPATIVO:
a) Fase 1- Diálogo a partir do conteúdo aqui exposto para
destacar alguns dados fundamentais;
b) Fase 2 – Pedidos de esclarecimentos de algum aspecto
do texto
c) Fase 3 - Apresentar sugestões para enriquecer o texto
d) Fase 4 – Sugestões quanto à aplicação da Antropologia
Teológica à catequese.
* Irmão Israel José Nery fsc, de Machado, MG,
membro do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs (La Salle ), é graduado na
Universidade Lateranense, em Roma, escritor (54 livros), conferencista e
professor. Foi Assessor da CNBB para Catequese, Ensino Religioso e Campanha da
Fraternidade (1983-1987) e para Educação (1997-1999), Provincial Lassalista
(1988-2003), Vice-Diretor da Conferência dos Religiosos da América Latina (CLAR)
de 1988 a
1991. É Secretário Provincial, integrante do Grupo de Reflexão de Catequese da
CNBB (GRECAT) e presidente da Sociedade de Catequetas Latinoamericanos (SCALA).
E-mail: irnery@yahoo.com.br
[1] “Adam” (originado do húmus, do
barro) denominação usada em Gênesis é um termo ambíguo já que pode ser
traduzido para se referir a um indivíduo como para o gênero humano, o ser
humano. O mais comum, tanto no uso hebraico como cristão, foi aplicá-lo a um
indivíduo que passou a ser denominado de “Adão”. Isso ocasionou, portanto, a
limitação de a “imagem e semelhança de Deus” ao homem, fundamentando, em grande
parte, o machismo judeu e cristão. Aconteceu que não se prestou suficientemente
atenção ao fato de que na tradução dos 70 para o grego a distinção é realizada
corretamente. A tradução de Adam é Anthropos, portanto, gênero humano e não um
indivíduo. Ora, a partir dessa compreensão, fica claro que a mulher, integrante
do gênero humano, é antropos, portanto, imagem e semelhança de Deus igual ao
homem.
[3] Adama-adão
(originário do húmus ou barro), em hebraico, é um termo ambíguo, pois serve
para denominar o ser humano como espécie, isto é, o gênero humano, como para
designar um determinado indivíduo. É preciso muito conhecimento para poder
distinguir no texto bíblico uma coisa de outra.
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