19º DOMINGO DO TEMPO COMUM: João 6, 41-51
O trecho do Evangelho de João sobre o qual hoje meditamos (João 6:41-51)
participa de um conjunto de textos que, no Primeiro e Segundo testamentos, nos
põe diante de um problema bem conhecido por nossa espécie: como alimentar tanta
gente diante da aparente escassez do necessário para garantir a saciedade das
necessidades de todas/os? Cuidaríamos primeiro “dos nossos”? Esse cuidado
tornaria legítimo assumir territórios e recursos naturais como propriedade de
“minha família”, de “meu povo”, de “minha nação” ou de “meu país”? Matar,
escravizar e explorar para garantir alimento e proteção para “os meus” seria um
dado de realidade insuperável?
O costume da prática religiosa, da citação de expressões litúrgicas
recorrentes e hoje distantes de seus contextos originários, pode nos fazer
despercebidas/os do sentido que as palavras de Jesus tiveram para seus
contemporâneos, bem como para as primeiras comunidades organizadas em torno de
seu movimento. Daí nosso possível espanto diante do murmúrio com o qual “os
judeus” responderam a sua afirmação: “Eu sou o pão que desce do céu” (v. 41).
Ora, essas palavras foram ditas “pouco antes da Páscoa” (v. 4), festa
judaica na qual se celebra, tradicionalmente, a difícil passagem daquele povo
pelo deserto, em cuja narrativa mítica cumpre uma função simbólica central o
pão, que, milagrosamente caído do céu, teria saciado a fome da multidão faminta
(Êxodo 16). Nada mais natural, pois, que aquelas/es que bem conheciam a
condição ordinária da vida de Jesus, estranhassem sua afirmação. Afinal, “não
conhecemos o seu pai e a sua mãe?” (v. 42), isto é, não é ele como qualquer um
de nós? Estaria, por acaso, esse “zé ninguém” querendo se entender igual ou
mais importante que Moisés?
Nós, pessoas religiosas contemporâneas, tão arraigadas a nossas próprias
verdades doutrinárias, a nossas próprias heroínas e heróis da fé, deveríamos
ser os últimos a murmurar diante do murmúrio daqueles judeus…
A mensagem de Jesus era e continua sendo radical e, por isso mesmo,
promoveu e continua a promover, mesmo entre aquelas/es que se dispõem ao seu
seguimento, muitas resistências e desentendimentos: “Eu sou o pão vivo que
desce do céu. Quem comer deste pão viverá para a eternidade. E o pão que eu
darei é a minha carne, dada para que o mundo tenha a vida” (v. 51). Alguns
versículos antes, Jesus havia dito: “Moisés não vos deu o pão do céu, mas é o
meu Pai que vos dá o verdadeiro pão do céu. Pois o pão de Deus é aquele que
desce do céu e dá vida ao mundo” (vv. 32, 33). E mais adiante afirmará: “Este é
o pão que desceu do céu: ele é bem diferente daquele que os vossos pais comeram
[no deserto]; com efeito, eles morreram, mas aquele que comer deste pão viverá
para a eternidade” (v. 58).
Apesar dessas anteriores afirmações – que poderiam, para alguns de nós,
apontar certo desprezo por questões materiais e um claro apego ao sobrenatural
–, Jesus não hesitou, em qualquer medida, na providência de alimento natural
para a multidão faminta a partir de “cinco pães de cevada e dois peixinhos”
(vv. 4-13).
Como entender esse aparente paradoxo? Como não fazer das palavras de
Jesus um novo impedimento religioso, agora autodenominado cristão, na escuta do
Pai? Como evitar que apenas atualizemos, agora em torno da figura de Jesus, o
mesmo tradicionalismo piedoso que, construído em torno da figura de Moisés,
impedia “os judeus” de entender o Primeiro Testamento para além das limitadas
fronteiras estabelecidas pela religião oficial da Sinagoga?
Talvez devêssemos maior atenção, nesse sentido, às palavras de Nietzsche
em Assim falava Zaratustra:
Vós me venerais; mas e se um dia vossa veneração tombar? Cuidai para que
não vos esmague uma estátua! Dizeis que acreditais (…)? Sois os meus crentes:
mas que importam todos os crentes? Ainda não havíeis procurado a vós mesmos:
então me encontrastes. Assim fazem todos os crentes; por isso valem tão pouco
todas as crenças. Agora vos digo para me perder e vos achar; e somente quando
todos vós me tiverdes negado eu retornarei a vós.
Formado a partir de dois outros livros, mais antigos – o Livro dos
Sinais e o Livro da Glorificação –, o Evangelho de João não
trata, diferente do que fazem os três evangelhos sinóticos, de milagres, mas
antes de sinais. Fundamentais à comunicação que sustenta a vida, natural e
cultural, os sinais não encontram seus valores senão naquilo a que remetem.
No Evangelho de João, desde sua introdução (1:1-18), Jesus é apresentado
como sinal do ordinário que remete ao extraordinário: um jovem trabalhador
periférico que, a partir dessa condição mesma, revelou-se o logos ordenador do
cosmos, o Verbo Vivo que sinaliza ao Deus em cujo Amor Infinito se gera e se
sustenta toda a Vida.
Assim se faz a “verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem”
(v. 9). Assim sinalizou, da fome ordinária das multidões de seu tempo e da
história de seu povo, à fome existencial profunda que acompanha nossa espécie em
todos os tempos e espaços. Assim sinalizou, do pão cotidiano, o Pão da Vida,
que mata toda forma de fome, pois regenera em cada pessoa a condição crística a
que somos todas/os convidados no nascimento. Condição que, para as pessoas
cristãs, é celebrada e conscientemente afirmada e reafirmada no Batismo e na
Eucaristia, e que nos compromete, sempre novamente, com a organização política
das multidões para a prática da partilha (v. 10: “Jesus disse: ‘Fazei-os
sentar’”).
Num mundo no qual a ganância capitalista, a propriedade privada de bens
naturais comuns e o desperdício individualista produzem desequilíbrio
socioambiental e uma desigualdade social responsável por inúmeras multidões sem
pão, Jesus, Pão da Vida, nos interpela, como interpelou a Filipe: “Onde
compraremos pães para que tenham o que comer?” (v. 5).
Texto de Herlon A. Bezerra ministro pastoral leigo
Diocese Anglicana do Recife, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.
FONTE: cebi.org.br
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