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quarta-feira, 3 de abril de 2024

PRÁTICAS QUARESMAIS: JEJUM, ORAÇÃO E CARIDADE

Recentemente, colocamos em nossa página no Facebook, uma postagem que causou muitos comentários negativos. Trata-se de um pequeno texto que circula pelas nas redes sociais desde 2018, que faz uma reflexão sobre o jejum observado pelos católicos, principalmente na Quaresma. Em alguns lugares a mensagem é atribuída ao Papa Francisco (como muita coisa na internet!). O conteúdo circula este ano (2024) desde 15 de fevereiro e acumula milhares de compartilhamentos. No entanto, não há comprovação de autoria. Não há registro dessas declarações nos discursos do Papa e o texto já foi atribuído a diferentes sacerdotes que negam a declaração.

Quanto a ser de autoria de Francisco, o site do Vaticano reúne transcrições dos discursos do papa Francisco em diferentes idiomas. Uma pesquisa no site não mostra resultados correspondentes ao conteúdo das declarações. Tampouco há essa menção nos discursos proferidos pelo pontífice em 2024.

O papa Francisco já fez comentários sobre o consumo de carne. Durante uma missa no dia 20 de fevereiro de 2015, ele comentou sobre o jejum quaresmal, que o compromisso deve ser “real, não meramente formal”. O jejum, confome o pontífice, não é apenas “uma observância exterior, mas um jejum que vem do coração”. Portanto, “o caminho da Quaresma é duplo: para Deus e ao próximo”.

Nesta mesma missa, o papa Francisco reafirmou que não se trata apenas de ‘não comer carne na sexta-feira’, ou seja, ‘fazer alguma coisita’ e depois deixar ‘crescer o egoísmo, a exploração do próximo, a ignorância dos pobres’. É preciso dar um salto de qualidade, pensando sobretudo em quem tem menos.

Como nenhum site de verificação de publicações online confirmou a autoria da frase: “Comem o que quiserem na Páscoa”, não se pode afirmar que Francisco ou qualquer presbítero tenha falado isso. No entanto, observamos que há muita coerência entre o que se diz na postagem e os pensamentos cristãos.

Vamos então verificar nos documentos do magistério da Igreja e também na Bíblia, o que se fala sobre “Jejum”.

Conforme o CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (CIgC), sobre doutrinas praticadas no tempo de Jesus, temos o registro da origem das práticas do jejum, que são práticas judaicas:

Muitos atos e palavras de Jesus constituíram, portanto, um sinal de contradição para as autoridades religiosas de Jerusalém – que o Evangelho de São João com frequência denomina "os judeus" – mas ainda do que para o comum do povo de Deus. Sem dúvida, suas relações com os fariseus não foram exclusivamente polêmicas. São os fariseus que o previnem do perigo que corre. Jesus elogia alguns deles, como o escriba de Mc 12,34, e repetidas vezes come com fariseus. Jesus confirma doutrinas compartilhadas por essa elite religiosa (fariseus) do povo de Deus: a ressurreição dos mortos, as formas de piedade (esmola, jejum e oração) e o hábito de dirigir-se a Deus como Pai, a centralidade do mandamento do amor a Deus e ao próximo. (Parágrafo 575 do CIgC)

Também no Catecismo encontramos as múltiplas formas da penitência na vida cristã:

“A penitência interior do cristão pode ter expressões bem variadas. A escritura e os padres insistem principalmente em três formas: o jejum, a oração e a esmola, que exprimem a conversão com relação a si mesmo, a Deus e aos outros. Ao lado da purificação radical operada pelo batismo ou pelo martírio, citam, como meio de obter o perdão dos pecados, os esforços empreendidos para reconciliar-se com o próximo, as lágrimas de penitência, a preocupação com a salvação do próximo, a intercessão dos santos e a prática da caridade, que cobre uma multidão de pecados (1Pd 4,8)”. (Parágrafo 1434 do CIgC)

“Os tempos e os dias de penitência ao longo do ano litúrgico (o tempo da quaresma, cada sexta-feira em memória da morte do Senhor) são momentos fortes da prática penitencial da Igreja. Esses tempos são particularmente apropriados aos exercícios espirituais, às liturgias penitenciais, às peregrinações em sinal de penitência, às privações voluntárias como o jejum e a esmola, à partilha fraterna (obras de caridade e missionárias)”. (Parágrafo 1438 do CIgC).

Sobre a nova lei da evangelização, também no Catecismo:

“A Nova Lei pratica os atos da religião - a esmola, a oração e o jejum -, ordenando-os ao "Pai que vê no segredo", em contraste com o desejo "de ser visto pelos homens". Sua oração é o "Pai-Nosso." (Parágrafo 1969 do CIgC).

Temos ainda, no Código de Direito Canônico, no Cânon 1251, a afirmação de que os fiéis devem guardar: “a abstinência e o jejum na Quarta-feira de Cinzas e na sexta-feira da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Esses são os dois dias em que nós, como fiéis católicos, estamos obrigados a guardar o jejum.

Convém também explicitar que o Jejum, muitas vezes, é uma prática de abstinência observada pelos católicos. Abstinência no dicionário: é o ato de abster-se, de privar-se do uso de alguma coisa, moderação ou sobriedade no comer, no beber e na vida sexual.

Pelo exposto acima vê-se que Jejuar não significa passar fome . A prática do  Jejum é um ato penitencial que ganha força no tempo de Quaresma, mas que pode e deve ser utilizado durante todo o resto do ano. É o que ressalta o Missionário Redentorista Padre Inácio Medeiros .  “A partir do advento de Jesus Cristo e do seu sacrifício redentor, paixão, morte e ressurreição, a Igreja começou a utilizar essa prática também como uma forma de penitência”.

Padre Inácio acrescenta que o jejum age em conjunto com outros exercícios de penitência que, no fundo, são um sinal externo da conversão do coração , da mudança de vida, da transformação da própria vida. Outra consideração importante é que a prática se distingue da abstinência de carne , que deve ser colocada em prática na Quarta-feira de Cinzas , que marca o início da Quaresma , e na Sexta-Feira da Paixão.

Importante:  O jejum não deve ser feito como algo obrigatório ou rotineiro . Assim como tantos outros exercícios que a Igreja propõe, a prática deve ser uma expressão do amor . Se for feito assim (como obrigação), perde seu sentido e sua razão.

De acordo com Padre Inácio Medeiros, a jejum não implica que uma pessoa vá ficar o dia inteiro sem se alimentar. A proposta é reduzir o mínimo possível a alimentação, como demonstração de desprendimento dos bens materiais, dentre eles o alimento, que é uma questão de subsistência . A prática implica que os fiéis creram na comunhão com Jesus Cristo e com todos os valores que o Redentor nos deixou. O jejum pode ser feito durante toda a Quaresma . Tradicionalmente, a prática é mais comum às sextas-feiras , pelo fato deste dia da semana registrar a Paixão e a morte de Jesus Cristo.

Segundo o Missionário, os jejuns podem ser classificados em:

1. Jejum da Igreja: O básico é aquele que opta pela prática tomar o café da manhã normalmente e depois faz apenas uma refeição (almoço ou jantar), alterando a outra que não é feita por um lanche simples. O importante é a disciplina, e você não come nada além dessas refeições. 

2. Jejum a pão e água: A proposta é que se coma pão quando houver fome e que se beba água quando estiver com sede. Porém não é permitido ingerir os dois itens ao mesmo tempo . É melhor ir comendo aos poucos durante todo o jejum . Também se deve beber água várias vezes no decorrer do dia.

3. Jejum à base de líquidos: Nesse tipo de jejum, o praticante deve passar o dia se alimentando apenas com líquidos , como sucos, chás e caldos de verduras, legumes e até carnes. 

4. Jejum completo: Esse tipo de jejum implica que a pessoa não ingira nenhum tipo de alimento e apenas água potável. É importante observar que antes você faça uma avaliação médica para saber se pode praticar desta forma. (José Inácio de Medeiros, CSsR).[1]

Referências Bíblicas ao Jejum

O jejum sempre foi uma prática religiosa adotada pelo judaísmo. No Antigo Testamento, encontramos várias referências ao Jejum como prática religiosa, principalmente, para o perdão dos pecados.  

"O jejum que me agrada é que vocês repartam a sua comida com os famintos, que recebam em casa os pobres que estão desabrigados, que deem roupas aos que não têm e que nunca deixem de socorrer os seus parentes. “Então a luz da minha salvação brilhará como o sol, e logo vocês todos ficarão curados."

(Isaías 58, 7-8).

“'Por que jejuamos', dizem, 'e não o viste? Por que nos humilhamos, e não reparaste?' Contudo, no dia do seu jejum vocês fazem o que é do agrado de vocês e exploram os seus empregados. Seu jejum termina em discussão e rixa e em brigas de socos brutais. Vocês não podem jejuar como fazem hoje e esperar que a sua voz seja ouvida no alto. Será esse o jejum que escolhi, que apenas um dia o homem se humilhe, incline a cabeça como o junco e se deite sobre pano de saco e cinzas? É isso que vocês chamam jejum, um dia aceitável ao ­Senhor? "O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo jugo?”

(Isaías 58, 3-6).

Jesus, como judeu criado com as práticas da religião, adotou em sua vida, também o jejum, a caridade e a oração, ensinando que estas práticas não são mera formalidade, mas, ações que visam alcançar a salvação:

"Quando jejuarem, não mostrem uma aparência triste como os hipócritas, pois eles mudam a aparência do rosto a fim de que os outros vejam que eles estão jejuando. Eu digo verdadeiramente que eles já receberam sua plena recompensa. Ao jejuar, arrume o cabelo e lave o rosto, para que não pareça aos outros que você está jejuando, mas apenas a seu Pai, que vê em secreto. E seu Pai, que vê em secreto, o recompensará.

(Mateus 6, 16-18).

Quando questionado pelo fato de que o seu grupo de discípulos não era visto jejuando, Ele responde:

“E eles lhe disseram: "Os discípulos de João jejuam e oram frequentemente, bem como os discípulos dos fariseus; mas os teus vivem comendo e bebendo". Jesus respondeu: "Podem vocês fazer os convidados do noivo jejuar enquanto o noivo está com eles? Mas virão dias quando o noivo lhes será tirado; naqueles dias jejuarão".

(Lucas 5,33-35).

Por fim, a primeira carta de Pedro, traz um alerta: "Sobretudo, amem-se sinceramente uns aos outros, porque o amor perdoa muitíssimos pecados". (1Pd 4,8). Esta, portanto, é a reflexão que devemos fazer quanto às práticas tradicionais a que estamos aderindo e mostrando aos outros. A realidade da fé pode ser facilmente comprometida por rituais vazios e uma busca superficial de Deus.  De nada adianta jejum de carne apenas para demonstrar que se é católico, se você não ama a seu irmão e se preocupa com ele, dando-lhe de comer e rezando por ele. Deus sabe o que vai em nosso coração e o que fazemos, nada é segredo para o Altíssimo.

 A mensagem de Isaías no capítulo 58, é atemporal, não é apenas uma crítica ao vazio religioso; é também uma chamada apaixonada para a ação. Somos desafiados a lutar contra a opressão, a compartilhar nosso alimento com os famintos, a abrigar os desabrigados, vestir os necessitados e viver os valores do Reino de Deus, sendo agentes de transformação do nosso mundo.

(...) Vocês não podem jejuar como fazem hoje e esperar que a sua voz seja ouvida no alto. (Isaías 58, 4).

 

Ângela M. L. Rocha

Catequista – Graduada em Teologia pela PUCPR

 



[1] * Redentorista da Província de São Paulo, formado em História da Igreja pela Universidade Gregoriana de Roma, já trabalha nessa área há muitos anos, tendo lecionado em diversos institutos. Atuou na área de comunicação, sendo responsável pela comunicação institucional e missionária da Província de São Paulo, atualmente é diretor da Rádio Aparecida

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