“O deserto é o lugar onde ficamos totalmente desprotegidos. Lá
estamos sozinhos frente a frente com nós mesmos, com nosso vazio interior,
nosso desamparo, nossa solidão, com o imenso nada ao redor e dentro do coração”
(Grün-Reepen).
Não faz muito tempo despedíamo-nos do tempo do Natal. Em
começos de janeiro guardamos as imagens do presépio, desmontamos a árvore de
natal com suas bolas multicoloridas e aquelas luzinhas chinesas que piscam,
piscam sempre. Lá no sótão, ou naquela prateleira da área de serviço, descansam
Maria e José, o Menino e pastores e também os magos, os carneiros dos pastores,
a manjedoura do menino. E agora tiramos outra caixa, a caixa da quaresma.
Talvez não. Talvez simplesmente nesta 4ª-feira das cinzas chegam até nós
palavras que perdemos um pouco a prática de pronunciar: esmola, jejum e oração.
Elas estão na caixa de papelão da memória. Na verdade, tiramos não de caixas de
papelão, mas do baú de nossa própria vida.
A Palavra do Senhor vem nos acordar. Primeiro, cinzas em
nossas frontes e essa proposta da esmola, do jejum e da oração. Mas afinal de
contas nós, cristãos do século XXI, não corremos o risco de parecer antiquados,
repetindo essas histórias de comer menos, de ficar pensando nos outros que
precisam de dinheiro e de “perder” tempo com a oração? Essas práticas que
tiramos do baú têm sentido? Temos pressa. Temos que aproveitar a vida…. Essa
proposta quaresmal parece nos impedir de seguir os tempos…
Mas atenção! Não podemos perder e desperdiçar o tempo da quaresma.
Entramos no templo. Mudaram-se os paramentos do verde para o roxo, deixou-se o
Glória nas alturas. Antífonas, leituras, hinos e cânticos nos falam da mudança
do coração, de um tempo favorável. Tudo começa com essas cinzas na fronte.
Sacramental, símbolo. Somos fragilidade. Nada de nariz arrebitado. Importante
ceder o lugar para o outro. Somos fragilidade, pó, poeira, cinza. Não dá para
entrar correndo no templo para receber as cinzas se nosso coração não der tempo
ao tempo para o recolhimento e para tomarmos consciência do quanto somos
odiosos com nossas posturas cheias, bem cheias, de egoísmo e de
autossuficiência. Nada de praticar a justiça diante dos homens, para que vejam
e digam que somos os tais… os melhores… nada de ritualismo vazio. As aparências
enganam. Desnudar o coração…
Lutamos, trabalhamos, vivemos dignamente. Precisamos pensar em nós….
Para o cristão, no entanto, não tem cabimento pensar apenas em si. Quaresma é
tempo de partilha, de aprendizado do dom de si, de desejo dar ao outro aquilo
que existe dentro de nós: um louco desejo de amor. Vestir os nus, colocar leite
na mamadeira das crianças, fazer uma campanha para esses desempregados. Esmola?
Sim e não. Solidariedade. Fazer-se dom. Se dermos o nome de esmola a este gesto
do dom dos bens e de nós mesmos, discretamente, sem que a mão direita saiba o
que faz a esquerda, teremos vivido uma gigantesca quaresma. Os outros, os
outros, sempre os outros. Cristo costuma marcar encontro conosco nos outros.
Preciso pensar nisso.
Essa gente toda que somos nós, adolescentes e jovens, adultos
e pessoas maduras nesse tempo da quaresma precisamos reencontrar o gosto pela
intimidade com o Senhor na oração. Fazer silêncio, escutar os gritos do
coração, ler a Escritura com os olhos do interior. Nada de oração alarido,
gritaria. Palavras sim, mas palavras que brotem de nosso nó interior. Oração
dos salmos, oração da Eucaristia, sempre uma oração que parta de nossa verdade
mais íntima. Oração feita no quarto, com porta fechada. A quantas anda nossa
intimidade com o Senhor?
Quaresma tempo de jejum. De privação de alimentos, certamente.
Uma dieta espiritual sóbria nesse mundo de consumismo. Quaresma tempo de
protesto contra essa sociedade de consumo, de cerveja o tempo todo, de
requintes, de todas as gorduras que nos fazem seres obesos, lentos, cansados,
pesados. Jejum de nós mesmos.
Sim, vamos entrar no tempo da quaresma, no deserto da quaresma…
Mateus nos ajuda com sua insistência na transparência: esmola, oração e jejum,
mas feitos a partir de nossa verdade e sem alarido, tudo discretamente.
Quaresma, tempo de conversão: “Converter-se não é em primeiro lugar
passar do vício para a virtude, mas viver uma mudança radical: aceitar de não
fazer sua vida sozinho, como numa queda de braço, mas acolher em Jesus a
iniciativa de Deus, a gratuidade de seu Amor, de seu chamamento e de seus dons.
No começo de tudo, não há mais o eu, o homem, mas o Amor de Deus” (Michel
Hubaut).
“No deserto topamos com nossos limites, descobrimos que não podemos nos
auto ajudar, que precisamos da ajuda de Deus. No deserto nos expomos sem
proteção, temos sede de tanta coisa e fome do que nos falta” (Grün-Reepen).
Frei Almir Guimarães
Província Franciscana da Imaculada Conceição do
Brasil.
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