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terça-feira, 12 de junho de 2018

A GENTE SE ACOSTUMA, MAS NÃO DEVIA...



Dia destes, recebi um pequeno vídeo com o texto “Eu sei, mas não devia”, de Marina Colasanti. E escutando eu pensei, meio sem perceber, no quanto a gente “não devia”, mas, “se acostuma” a algumas coisas, também na catequese.

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a não esperar muita coisa das nossas famílias. E entende a tantas e muitas desculpas para que elas não participem da Igreja. E, porque a gente já se acostumou, nem liga mais se é verdade ou apenas desculpa. E, porque já se acostumou a gente esquece o que é evangelização e vai na onda, fazendo só o “social” dos sacramentos.

A gente se acostuma a lembrar do encontro só no dia em que ele acontece e vai pra lá apressado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o conteúdo no ônibus ou no carro porque não teve tempo de ver antes. Pra que caprichar se ninguém presta atenção? E vamos pedindo ao Espírito Santo que faça por nós o que não temos tempo de fazer. E a virar as semanas sempre do mesmo jeito, sem ter pensado de fato, no que é a missão e no porquê do nosso chamado.

A gente se acostuma a ler as estatísticas da religião e a aceitar que cada vez mais as pessoas se afastam dela. Porque simplesmente não tem tempo. E, aceitando que a fé está morrendo, aceita as ausências e que haja cada vez menos crianças e famílias nas missas. E, aceitando os números, deixa de acreditar na evangelização.

A gente se acostuma a esperar o dia do encontro e receber inúmeros recados no whatsapp dizendo: “Hoje meu filho não pode ir”. E aceita que essa impossibilidade nem sequer tenha motivo para acontecer. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. E esquece que o produto mais importante das nossas vidas é o “acreditar”, ter esperança e amarmos uns aos outros.

A gente se acostuma à falta de comprometimento. Às salinhas fechadas, à luz artificial, a falta de espaço, à falta de material.  Se acostuma a não ouvir uma palavra de incentivo, a temer a autoridade das lideranças. E acha tão normal que seja assim!

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.  E no fim de semana não há muito o que fazer, aceita que ir à missa com as crianças, é só mais um transtorno e um incomodo para os pais. E a gente acaba satisfeito, e diz pra si mesmo "fiz a minha parte".

E assim a gente se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

E a gente se acostuma, não devia, mas acaba se acostumando...

Ângela Rocha

Abaixo o texto original:
Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(1972)

Marina Colasanti
 nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com “Eu sei, mas não devia” e também por “Rota de Colisão”. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zoológico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

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