Reflexão sobre João
2,13-22: Entendendo um pouco mais o evangelho do domingo
Contexto
Se olharmos o contexto de João 2,13-22, veremos que é
totalmente diferente do mesmo relato em Mateus, Marcos e Lucas. Nos Evangelhos
sinóticos, o ataque ao templo e relatado também na Páscoa, mas no fim da
atuação de Jesus, pouco antes de sua prisão. João coloca esse episódio no
início do ministério de Jesus, após a vocação dos discípulos e o sinal nas
bodas de Caná. Com isso, João coloca um peso especial nesse relato: mostra que
Jesus, no início de seu ministério, identificou o templo como um problema-chave.
Após a narrativa do conflito no templo, João relata a conversa de Jesus com
Nicodemos sobre a participação no Reino de Deus. Isso para mostrar que as
lideranças dos judeus, desde o início do ministério de Jesus, não o entenderam
e o encararam como uma ameaça. Esse texto, colocado no início do Evangelho,
mostra que o templo é uma ameaça para o Reino pregado por Jesus e que Jesus era
uma ameaça para o templo. No fim, quem prendeu Jesus foram os soldados do
templo e o torturaram a mando da direção do templo.
Conflito central do texto
O templo tem que ser destruído porque se desviou de sua
função, ou melhor, porque cumpre exatamente a função dada a ele por Salomão:
ser aparelho ideológico do Estado. O templo virou sustentáculo do sistema
econômico vigente. Atacando os cambistas e vendedores, Jesus atacou a família
do sumo sacerdote, que tinha autorização para comercializar no templo. Dessa
forma, também atacou o sumo sacerdote e a função do templo de ser o
sustentáculo econômico da capital. O templo girava em torno do econômico e
legitimava o sistema econômico, que, por sua vez, legitimava o político e o
ideológico. E o econômico era decidido pelo Império Romano, e esse designava o
sumo sacerdote, que, por sua vez, legitimava a opressão via religião. Jesus diz
no v. 16: “Não façais da casa de meu pai casa de negócio”. O negócio não
era apenas vender algumas pombas e cabritos, mas era a venda de todo o país, do
povo e do projeto de Deus e do próprio Deus. Assim, o templo era o empecilho
número um na construção do Reino de Deus.
Posição de Jesus frente ao templo
Jesus usava o templo como espaço para a sua pregação, pois
ali se reunia gente, era o local apropriado para a pregação do Reino. Só que o
templo não fora concebido para tal e, por isso, tinha que ser destruído. O
contato diário que Jesus tinha com o povo acontecia longe do templo. Ele
descentralizou a pregação, o perdão, a purificação, que eram de graça e através
dele e não do templo.
George V. Pixley diz em O Reino de Deus na p. 86: “O
movimento de Jesus viu, como principal obstáculo à realização do reino de Deus
na Palestina, o templo e a estrutura classista que o templo apoiava”. Na p.
95, Pixley afirma que a pregação de Jesus e de seu movimento girava em torno do
amor ao inimigo, do perdão, do suportar o mal. Isso era tática para separar a
sua pregação da dos zelotes, que viam nos romanos o inimigo principal do povo.
Por isso, esses pregavam e agiam pela via militar para alcançar a libertação. O
movimento de Jesus não via Roma como principal inimigo. Achava que era
necessário primeiro afastar a dominação do templo sobre o povo. Esse legitimava
a dominação romana, como antes legitimara a monarquia e o modo de produção
tributário. Os zelotes queriam apenas os romanos fora; eram religiosamente
conservadores e nacionalistas. Não tocariam no templo nem na estrutura de
classe.
Função do templo no AT e NT
1 Reis 5.4-5 diz: “Porém, a mim o Senhor meu Deus me tem
dado descanso; não há nem inimigo, nem adversidade alguma. Pelo que intento
edificar uma casa em nome do Senhor, meu Deus”.
O reinado de Salomão era época de paz. 1 Reis 4 mostra a
espoliação a que o povo estava sujeito. Quando há guerra, dá para justificar o
tributo (que era cobrado em mercadoria – produtos do campo – e em trabalhos
forçados), porque se necessita manter o exército e o Estado que está aí para
proteger. Em época de paz, no entanto, o Estado não tem mais serventia para as
tribos e aldeias: deixa de ser necessário. Por isso, Salomão começa com a
construção do templo, para justificar a cobrança do tributo em época de paz, ou
melhor, para dar continuidade à cobrança do tributo, que agora não tem mais
justificativa. A justificativa para formar o Estado foram as ameaças externas,
mas a raiz estava nas desigualdades internas (Juízes 8.33 – idolatria; 1 Samuel
11.7 – boi; 1 Samuel 25 – ricos e servos; Êxodo 21 e 22 – boi e escravo; 1
Samuel 22.1-5 – dívidas; 1 Samuel 13.19-23 – ferro). O templo tem a função de
justificar a cobrança de tributos e legitimar o Estado e o sistema econômico
tributário. Antes, Deus era contra o Estado (Deuteronômio 6.20-23; Josué 6-8; 2
Samuel 7.1-7). Agora, com o templo, Deus é manipulado e deve justificar o
Estado com uma nova teologia: da bênção, do sacrifício, dos ritos, da natureza.
O templo vira aparelho ideológico do Estado. E o Estado surgiu por causa da
luta de classes, para favorecer a classe que havia acumulado posses.
O templo também teve essa função no tempo de Jesus: colocar
Deus ao lado da classe dominante e justificar a exploração teologicamente.
Jesus diz: “Não façais da casa de meu Pai casa de negócio”. Essa era a
função do templo: legitimar os negócios da classe dominante de Israel e de
Roma. Por isso, esse templo tem que ser destruído. Jesus diz ao povo de Israel
para destruir o templo e que ele o reconstruirá em três dias. O v. 21 fala que,
após a ressurreição de Jesus, ele será o templo vivo; e com esse não dá para
legitimar a espoliação da classe dominante e o seu Estado. Sem templo haverá só
Deus, e Jesus será o intermediário entre Deus e as pessoas. Não mais o templo.
Com o fim do templo chega ao fim a legitimação, via fé, da exploração
econômica, que determina o político, o social e o ideológico. O templo escondia
Deus e o revelava como aliado da classe dominante. Assim também foi no carnaval
do Rio há alguns anos atrás, quando uma escola de samba saiu com Cristo como
mendigo, rodeado por outros mendigos. Naquela ocasião, o cardeal do Rio proibiu
o Cristo mendigo de desfilar. O carnavalesco cobriu o Cristo mendigo com uma
lona preta com os dizeres: Mesmo proibido, rogai por nós. O templo hoje também
encobre o Cristo verdadeiro, pois ele é crítico à classe dominante e à religião
cristã acoplada ao sistema econômico.
João coloca esse texto no início do seu Evangelho, porque a
chave da luta de Jesus está aqui: o templo e sua teologia legitimam a estrutura
de classes e impedem a viabilização do Reino de Deus.
A partir de Salomão, quando esse colocou a Arca da Aliança
(que simbolizava a presença de Deus no meio dos camponeses) no Santo dos
Santos, Deus habitava no templo ao lado do palácio. A partir daí, Deus era
controlado pelo Estado para legitimá-lo e o que ele representava: os interesses
da classe dominante. Isso os romanos sabiam e usaram o templo tal e qual foi
usado no AT. Atacando o templo, Jesus atacava todo o sistema de dominação e a
sua teologia. Os profetas já haviam atacado o templo com sua prática. Lembro
Jeremias 26,18, Amós 5.21-27 e Miqueias 3.12. Também Herodes compreendeu a
função do templo e, por isso, o embelezou (com o dinheiro do povo), tentando
legitimar o seu reinado.
Jesus ordena no v. 19: “Destruí este santuário”,
porque vocês o construíram, e Jesus o reconstruirá através de seu corpo. Por
isso, Apocalipse 21,22 afirma: “Nele não vi santuário, porque o seu
santuário é o Senhor, o Deus todo poderoso e o Cordeiro”. Deus não mais se
manifesta através do templo, se é que já se manifestou nele ou através dele.
João diz em 1.14: “E o Verbo se fez carne e armou tenda entre nós”. Por
isso, o templo deixou de ser revelação de Deus. Após a morte de Jesus, o véu do
templo rasgou. A vida de Jesus revela que Deus não está preso, rompendo com o
templo definitivamente.
Atualização
O texto nos leva a refletir e questionar a prática da Igreja
hoje, enfim, sobre a nossa prática. Qual o papel da Igreja dentro da luta de
classes hoje no Brasil? Como Jesus se posicionaria hoje no Brasil frente ao
conflito de classes e à atuação das Igrejas dentro dessa realidade? Estamos
fazendo o papel do templo de Jerusalém, que esteve aliado à classe dominante e
ao imperialismo romano e legitimava a espoliação da classe camponesa e não
reagia ante a dominação romana, enfim, legitimava o sistema econômico com todos
os seus desdobramentos?
Salomão e Davi pensaram o templo como instrumento religioso e
ideológico para legitimar o Estado e a existência de classes na sociedade.
Jesus se revoltou contra isso. Deus não se coloca a serviço dos exploradores e
suas estruturas, mas as combate. Essa foi a cruz de Jesus desde o início de seu
ministério, e ela apenas se completou na Sexta-Feira Santa. Atacando o templo,
Jesus enfrentou todo o sistema de dominação econômica, política, social,
religiosa e ideológica da época. Isso lhe trouxe a cruz, mas também a
ressurreição, que é o sinal visível de que Deus supera as reações contra seu
projeto. Combatendo o seu projeto, eles o tornaram mais claro, mais completo e
indestrutível.
1) Qual o porquê e o significado da ação de Jesus no templo?
2) Como a ação de Jesus no templo nos questiona enquanto Igreja?
3) Hoje, a prática da comunidade, a exemplo de Jesus, questiona o sistema
econômico, político, social, ideológico e religioso? Sua prática profética
procura mudá-lo ou o legitima?
Texto de Günter Wolff.
Fonte: Proclamar Libertação – Volume XIX, 1993.
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