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domingo, 15 de outubro de 2023

A CRIANÇA E A FÉ

Todos nós experimentamos o que é “ser criança”. Possivelmente nossas lembranças da infância se misturam às histórias que nossa família conta a respeito de nós. Lembranças como os primeiros passos, palavras, a chegada na escola, são muito ricas de significado para a formação de nossa identidade. A proposta deste texto, porém, é tecer um diálogo entre a criança e a fé. A criança expressa sua compreensão do mundo mais por meio dos “sentidos” do que por um discurso “elaborado” (mundo adulto). Portanto, vamos falar daquilo que não conhecemos muito, mas que percebemos e sistematizamos mediante nossos relacionamentos com as crianças.


A fé e as crianças

Há muitos textos na Bíblia que falam sobre fé. Mas, qual deles fala na perspectiva da criança? Dessa forma, seria oportuno perguntarmos a nossas crianças o que elas “entendem” sobre a fé. Afinal, como falar de fé no mundo das crianças? Discorrer sobre a fé na vida das crianças é um desafio que nos aproxima de alguns conceitos que adquirimos na infância. Nossa fé “adulta” está diretamente vinculada com a vivência e convivência no mundo infantil. A fé é cultivada nas relações que travamos desde que nascemos. Portanto, está ligada aos significados e sentido que damos à vida. Mas o que isso tem a ver com nossa forma de sermos agentes do Evangelho junto às crianças? Como o estudo da fé nos ajuda a estreitar laços humanos e didáticos com as crianças?

Sabemos que somos seres sociais. Portanto, o desenvolvimento da nossa fé tem suas sutilezas a partir das relações humanas. Relacionando-se com os outros, o ser humano se encontra e se define como pessoa. Isso influencia o significado que damos à vida e à maneira como desenvolvemos a nossa fé.

Segundo Serbenna (1987) , a fé começa a ser percebida ou assimilada pela criança nas linguagens (verbais e não-verbais) inseridas no relacionamento.

Ao primeiro choro, com o sopro de vida nos pulmões, se dá o início da educação para a fé. Antes mesmo de ouvir falar de Deus ou pronunciar seu nome, a criança terá sentido na pele e respirado o oxigênio da atmosfera de Deus, e percebido sua realidade velada que cerca o mundo das pessoas. Por isso se diz que a fé entra pela carne.

Assim, a fé está situada nas relações e tem a ver com o sentido da vida. Afirma ainda a autora:

O conhecimento de Deus é, antes, um encontro com os pais. A criança constrói, aos poucos, a imagem de Deus com os elementos recebidos dos adultos. Sempre que os pais se mostram severos e exigentes, ela vai formando a idéia de um Deus hostil, mais dado ao castigo que à graça, que vê muitos erros e poucas virtudes. Esse tipo de tirania pode, no futuro, dar lugar à revolta. Tudo o que a criança vive hoje, obscuramente, com os pais, é o que será descoberto amanhã, mais claramente, entre ela e Deus. (SERBENNA, 1987)

A fé está vinculada à busca de segurança em alguém ou algo que é considerado o centro da vida humana: “Procuramos algo para amar e que nos ame, algo para valorizar, e que nos dê valor, algo para honrar e respeitar e que tenha o poder de sustentar nosso ser”. (FOWLER, 1992)

Fowler (1992), o autor da teoria dos estágios da fé, relaciona a fé com o significado atribuído à vida e também com o reconhecimento da necessidade do outro. Isso porque a fé está ligada às perguntas da vida e suas relações. E é a partir das relações que se pode perceber a importância deste estudo para a vida da criança.

James Fowler, pastor metodista e psicólogo, é um estudioso da fé e sua relação com o desenvolvimento humano. Seus estudos resultaram na teoria dos Estágios da fé. Essa teoria não é como uma escala de realização, pela qual se pode medir a fé das pessoas. Os estágios não representam alvos educacionais ou terapêuticos a serem alcançados. Fowler não invalida nem desconsidera que a fé é dom de Deus (Ef 2.8), sendo Ele quem dá o crescimento (1Co 3.7). Esses estágios estão interligados, ou seja, cada estágio traz conteúdo dos anteriores.

Para Fowler (1992), a religião pode ser entendida como uma "tradição cumulativa": textos, escrituras, leis, narrativas, mitos, profecias, relatos de revelações, símbolos visuais, tradições orais, música, dança, ensinamentos éticos, teologias, credos e ritos. Já a fé é algo mais profundo, é a forma como a pessoa ou grupo responde ao valor transcendente. Fé e religião são recíprocas. A fé é algo profundo e rico, é uma orientação de personalidade em relação a si mesmo, ao próximo e ao universo, é uma resposta total, uma forma de ver as coisas e lidar com as coisas que acontece com você.

A fé, interpretada por meio da relação, começa nos primeiros anos de vida, quando o bebê interage com seus pais ou responsáveis. Entre eles há fidelidade, lealdade, segurança. Há uma relação entre o desenvolvimento humano e a fé.

Os “Estágios da fé”, propostos por Fowler (1992) possibilitam um mergulho na compreensão dos modos pelos quais a criança lida e encara a fé, em seu desenvolvimento humano.

Apresentamos os quatro primeiros estágios, que cronologicamente incluem infância e adolescência.

a) FÉ INDIFERENCIADA - primeira vivência da fé – até os 03 anos.

A dependência do bebê é muito maior do que a de outros mamíferos. É necessário que o bebê se sinta querido e bem-recebido em seu ambiente. Fowler acredita que as pré-imagens de Deus estão inseridas nesse primeiro estágio, quando a criança não diferencia a si mesma dos outros. As pesquisas nesse campo ainda são muito restritas.

A confiança na vida e no mundo pode se fazer ausente quando o relacionamento com os pais ou responsáveis, bem como assistência recebida pela criança, são inadequados. Os provedores (pais ou responsáveis) representam a dependência e uma relação da criança com “alguém poderoso”. É esse “alguém poderoso” que contribui para os conceitos de Deus nos próximos estágios.

Para Erikson , outro psicólogo que estudou o desenvolvimento infantil, a confiança da criança em alguém que se considera com “poder” para cuidar dela a levará a elaborar sua conceituação de Deus. Portanto, o estabelecimento de relacionamentos saudáveis é indispensável no início da vida.

b) FÉ PERCEBIDA – dos 03 aos 07 anos

Acontece neste estágio o fenômeno da imitação e dos “por quês”. As novidades encontradas pelas crianças ainda não têm categorias e nem mesmo estruturas desenvolvidas previamente. As conversas entre as crianças parecem mais monólogos em forma de diálogo, porque cada criança fala para si mesma. Não sabe comparar diferenças. Deus mora no céu, mas é encontrado em imagens antropomórficas (em forma de ser humano).

A percepção de Deus está centrada em símbolos e imagens concretas (por exemplo: desenho de histórias bíblicas). Mistura-se a realidade com a fantasia. Do início até a metade desse estágio, as histórias contadas para as crianças abrem um grande cenário para a formação de imagens sempre associadas a um final feliz. Na outra metade do estágio, pode-se perceber o medo da morte e a percepção dos limites da vida. Os “nãos”, os tabus e proibições são projetados geralmente para a sexualidade e a religião.

A criança percebe Deus da seguinte maneira: mora no céu, pode ser visto num cartão, é descrito como homem, fala por sinais, é conhecido pela TV e está presente por todo o mundo.

Nos espaços de aprendizagem (como a catequese), é necessário criar um ambiente em que a criança expresse livremente as imagens que está formando, por exemplo, usando-se para isso as parábolas. É muito saudável incentivar o uso da imaginação da criança, evitando a imagem de um Deus que traga terror e destruição.

c) FÉ SIMBOLIZADA - dos 07 aos 12 anos

Neste estágio, desenvolve-se o pensamento lógico: a criança já sabe definir espaço e tempo. A criança tende a investigar e a testar o novo (ensinamento dos adultos) e fala sobre sua própria experiência. Deus se torna mais pessoal e está relacionado com as atitudes dos pais. Ele continua a ser entendido em termos antropomórficos, porém a relação com Deus é de reciprocidade (há um compartilhar, um dar e receber em relação a Ele). Deus é visto como um velho de barba branca e com mais detalhes. Ele faz o que acha ser o melhor, assim como os pais (ou responsáveis). A justiça de Deus é baseada também na reciprocidade (as pessoas devem ser justas também).

A criança tende a se apegar mais intensamente às regras e atitudes morais. Ela constrói um mundo mais ordenado. É necessário, portanto, oferecer a criança subsídios para que não se torne extremamente exigente, perfeccionista, muito controladora.

d) FÉ COMPARTILHADA - Adolescência

Na fase da adolescência, toda a educação na fé será indispensável para a formação saudável da identidade. Denomina-se este estágio como fé compartilhada. Deus parece estar vinculado a um relacionamento profundo, no sentido de desejo de conhecimento do outro. Nele existe algo de misterioso, que transparece na busca da plenitude da vida frente aos limites que ela mesma impõe. Deus geralmente é visto como companheiro, amigo pessoal, sempre pronto a dar sua orientação e apoio.

O adolescente é convencional quanto à opinião de outros e apreende novos valores a partir do que recolhe em seus relacionamentos e da maneira como organiza esses valores internamente. Sua perspectiva das coisas ainda é dependente, pois sua identidade até este momento está em formação. Os outros estágios desenvolvidos por Fowler (1992) relacionam-se à fase adulta e terceira idade.

Algumas orientações:

A fé é um pilar que sustenta não só a espiritualidade, mas a dimensão pedagógica na vida de nossas igrejas. Os autores aqui relacionados ajudam a perceber o estreito relacionamento entre a fé e o desenvolvimento humano, bem como sua importância para a convivência em comunidade.

Cada estágio em Fowler (1992) retrata uma compreensão de fé. Além disso, a teoria do desenvolvimento da fé fornece um conhecimento do Evangelho comprometido com a saúde integral nas igrejas. A educação da fé é um rico subsídio para o conteúdo dos diálogos com as crianças.

A seguir, algumas orientações sobre como ajudar no trabalho dos pais e catequistas junto às crianças:

- Procure capacitação contínua para melhor compreender a vida das crianças, dos adultos e como interagem;
- Conceitue sua imagem de Deus e procure perceber como ela influencia a vida das crianças com quem você convive;
- Dialogue com as crianças a respeito da fé que elas têm;
- Participe com as crianças das atividades dadas a elas, desenhando junto, por exemplo;
- Compartilhe com as crianças sua experiência de fé;
- Inclua as crianças nas decisões na família e na igreja;
Inclua a participação das crianças na organização de celebrações voltadas para elas;
- Promova encontros de pais, de catequistas; de crianças e de todos esses grupos conjuntamente;
- Promova momentos de transição de uma etapa para a outra na catequese (ex: festas, confraternização, ritos de passagem, celebrações de entrega, símbolos);
- Procure recursos em outras áreas do conhecimento humano (psicologia, pedagogia, sociologia), para enriquecer seus conhecimentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O saber é adquirido em várias fontes, antes mesmo de exercer sua profissão como educador. É somente sobre o prisma da transcendência que a vida humana pode encontrar seu sentido verdadeiro e legítimo. Os catequistas tendo conhecimento dos estágios instituídos por Fowler (1992), podem exercer influência positiva no desenvolvimento da fé dos seus catequizandos, bem como ajudá-los na busca e sentido da vida e na experiência com o transcendente contribuindo para a sua maturidade humana.

Conhecer a si mesmo e seu processo para depois compreender o caminho do outro e seu crescimento humano será o constante desafio de cada pessoa que se propõe a tarbalhar a religião com a criança, seja o professor de ensino religioso ou o catequista.

Dada a diversidade religiosa observada no mundo atual, até mesmo entre pessoas da mesma família, é interessante observar e respeitar as crenças e modos de experssá-las, presente em cada núcleo familiar. Recursos, conhecimentos acerca da cultura religiosa e da realidade local, encaminhamentos metodológicos, tudo isso será de grande valia quando a postura do catequista for de respeito e tolerância não apenas para com as religiões, antes porém, para com a individualidade de cada catequizando.

A fé se torna um pilar que sustenta não só a espiritualidade, mas a dimensão pedagógica integral do ser humano. Os autores aqui citados auxiliam no relacionamento dos saberes dos catequistas com o desenvolvimento da fé e da iniciação á vida cristã.

(PAULA, Blanches. A criança e a fé. Revista Caminhando, vol . 9, n . 2 [14], p. 77-88 , ago/dez 2004).


REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ERIKSON, Erik. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

FOWLER, James W. Estágios da fé: A psicologia do desenvolvimento humano e a busca de sentido. São Leopoldo: Sinodal/IEPG, 1992.

FOWLER, James. Teologia e Psicologia no Estudo do Desenvolvimento da Fé. In Concilium (176), Petrópolis: Vozes, 1982.

FOWLER, James. Introdução Gradual à Fé. In Concilium (194) 4: Teologia Prática – Transmitir a Fé à Nova Geração. Petrópolis: Vozes, 1984.

NOVAES, Regina. Os jovens de hoje: contextos, diferenças e trajetórias. In: ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de. EUGERIO, Fernanda (Orgs). Culturas Jovens: Novos mapas de afeto. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

SERBENNA, Iris M.B. Fé e vida crescem juntos. São Paulo: Paulus, 1987.

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