ASSUSTA-ME ESTE RISCO
15º
Domingo do Tempo Comum – Ano C - (Lc
10, 25-37)
A
parábola é daquelas mais conhecidas. Tão conhecida que até achamos que a
conhecemos por todos os lados. Talvez só no falta, então, que ela nos apanhe,
de vez, que nos dê aquela “laçada” que deu ao Doutor da Lei.
Tudo
começa numa conversa cheia de malícia por parte do Doutor da Lei. Ainda os há,
desses, manhosos, que usam palavras como ferrões. Que pena… Adiante, que há que
limpar o pó dos pés e seguir!
Tudo
começa numa conversa dessas e com aquele “Meeestre”, dito cheio de ironia. Um
Doutor sem mestria, e um Mestre sem Doutoramento, eis lançada a situação. Jesus
não lhe dá espaço para discussão porque lhe responde com uma pergunta. E o
Doutor da Lei respondeu. Quer dizer, respondeu-se, a si mesmo. Não pode agora
argumentar, como esperava…
Querendo
fugir deste primeiro nó que Jesus lhe deu, virou-se para outro lado e fez nova
pergunta. Sobre o próximo, diz ele. Jesus contou-lhe a parábola do samaritano,
em que põe à mostra a idolatria da qual a casta de Jerusalém se tinha tornado
servidora.
É
antiga esta regra da mística judaica: os ídolos têm olhos e não veem, têm
ouvidos, mas não ouvem, têm boca, mas não falam, têm mãos, mas não atuam, têm
pés, mas não se aproximam, têm pescoço, mas não há sopro dentro dele, tem
tronco, mas nele não mora um coração. E - aqui vem a regra! - tornam-se iguais
a eles aqueles que os adoram. Pode ir ver o Salmo 115, por exemplo, ou o 135,
que o repete.
Do
que fala esta parábola de Jesus senão desta idolatria? Um culto que não gera
fraternidade, nem justiça, nem sensibilidade. Um homem que descia de Jerusalém,
apanhado e maltratado por ladrões, fica ao “Deus dará” naquela beira de
caminho. E Deus dá, por meio do samaritano, porque com o sacerdote e o levita
não pode contar. Aqueles que descem de Jerusalém manifestam, no seu modo de
proceder, a idolatria que lá estiveram a praticar. Porque vêm iguais aos
ídolos! Com olhos, não veem; com ouvidos, não ouvem; com boca, não falam; com
mãos, não atuam; com pés, não se aproximam; não há sopro de vida neles, nem
coração que lhes dê voltas no peito. Jerusalém desmascarada.
Assusta-me
esta possibilidade de transformarmos o Deus Vivo num ídolo morto. Assusta-me
porque sei que é uma possibilidade real e presente. Perturba-me o risco que
corremos continuamente de transformarmos o Evangelho da Vida num manual
religioso, a Palavra de Deus num devocionário de cabeceira, a Cruz num adorno e
Jesus num amuleto. Sim, isto é possível. E acontece.
Precisamos
de nos converter, sempre. O caminho é a Humanidade de Jesus. Tornarmo-nos
humanos assim, à medida e maneira dele, com olhos que veem, ouvidos que ouvem…
Gente com coração e entranhas de misericórdia.
Os
ídolos, frios e mortos que estão, acabam sempre por fazer de nós gente assim
fria, blindada, impermeável e rígida. Na convenção dos adoradores dos ídolos,
ficarás sempre com a sensação de teres de pedir desculpa por estares vivo.
Mexes-te demais. Existes muito! Sai de lá, rápido, que a apatia pega-se e a
indiferença é viral.
Não
te metas com ladrões, que eles levam-te por caminhos de violência. Não te metas
com Doutores da Lei, também, que eles levam-te para as tocas deles, onde te
tornam imunes ao sofrimento e opacos à misericórdia.
Aquele
homem ali tombado na beira do caminho é vítima duas vezes. É vítima da Lei da
Natureza, esse ímpeto de agressão que levamos em nós, a selvajaria, a inveja e
o roubo. É também vítima da Natureza da Lei, que permanece imune aos gemidos. A
perversão da lei é o legalismo que coloca a norma acima da pessoa, que defende
a norma das pessoas! Assim acontecia ali, porque segundo a lei de Israel o
sangue tornava as pessoas impuras. E os de Jerusalém, sacerdote e levita, que
desciam tão puros e íntegros pelo caminho…
Entre
a lei da Natureza e a Natureza da Lei, aparecem as Entranhas da Graça.
Comovem-se as entranhas daquele samaritano, homem de má raça para os judeus,
impuro por nascimento. Perdido por cem, perdido por mil!
A
Graça imensa de um Deus Samaritano!
Deus
Andarilho, Cigano, Perdido…
Senhor, Pai de Jesus
e meu Pai, quero, ao menos, estar Vivo!
Quero que me
encontres, ao menos, em toda a minha debilidade e pequenez, capaz de tocar e
ser tocado.
Prefiro ser
vulnerável, com todos os problemas que isso me traga, a tornar-me duro e
insensível, porque essa convocatória mortal daria cabo de mim para sempre.
Salva-me, oh Deus.
Abba, Deus Vivo e
Fonte de toda a Vida, faz-me participar da existência de Jesus, enxerta-me
na Sua imensa humanidade, que eu quero ser membro dele, e quero viver da Seiva
Viva do Seu Corpo, do Vosso Espírito, como Sangue.
Em mim. Através de
mim. Para sempre.
Amém.
Pe. Rui
Santiago, cssr.
Nenhum comentário:
Postar um comentário