E não poderia deixar de partilhar aqui esta homilia, que de tão bela e poética chega quase a nos fazer sentir o cheiro das essências que traziam consigo os Reis Magos.
"A TUA FAMA É ODOR QUE SE ESPALHA" (Ct 1, 3)
Domingo
da Epifania (Mt 2, 1-12)
Isto
de ir perguntar a um rei onde está "O" rei que devia nascer, é
provocação grande demais! Tudo aqui está em movimento nesta página cheia de
andanças. Há duas cartografias e duas fotografias. Duas cartografias e duas
fotografias de reinos diferentes...
Estou
a escrever estas coisas na Guine-Bissau, onde o céu é maior que noutros
lugares. Neste momento da noite não há luz elétrica nem nenhum barulho para
além dos da terra. Estive lá fora um pouco a olhar para as estrelas e parece
que quando a gente olha para elas, param de respirar, suspendem o fôlego para
não fazerem ruído sequer, ficando apenas aquele tremelicar de quem está a
segurar o ar por muito tempo. São caladinhas as estrelas.
A
imagem dos magos a seguirem o fio prateado de uma estrela é de uma leveza
fantástica, uma metáfora cheia de poesia. Tudo é sossegado neste seguimento. A
estrela desenha um risco na cartografia desta estória evangélica todo da cor da
paz e do silêncio.
Mas
ponho-me a olhar para a outra estrela que os magos encontram, a
"Star" de Jerusalém, o rei faz-de-conta Herodes. Fixo-me nos seus pés
como se os passos que dá deixassem rasto riscado no chão. E espanto-me com a
evidência... É alguém que gira-gira,
roda-roda, vai, chama, manda vir, a estes e aos outros... O risco dos seus passos
segue à risca a sua própria circunferência! É alguém que deixa no chão um
emaranhado de traços todos à volta de si próprio.
São
duas cartografias de dois reinos muito diferentes! Um é o traço riscado no céu
em forma de direção e silêncio, como um segredo transmitido só num beijo. O
outro é o novelo riscado no chão em forma de circuito fechado e curtinho,
perímetro medíocre de influência e perturbação.
É
sempre esta a luta da construção do Mundo Novo chamado Reino de Deus: o
face-a-face com os anti-reinos que são os minúsculos e violentos impérios que
vamos criando em função dos nossos egoísmos.
Estas
são as duas cartografias, a do Reino de Deus todo caminho e direção, e a do
Anti-Reino todo circunfechado e desnorteado.
Mas
há também duas fotografias de apresentação destes dois reinos. E só para fazer
memória dos rolos fotográficos, vamos revelá-las assim:
Fotografia 1. Era uma vez uns magos
que encontraram um rei que ficou assustado, espantado e, atrás dele, conseguiu
perturbar e alvoroçar a cidade inteira!
Fotografia 2. Era uma vez uns magos
que encontraram um rei que - SHIIIUUU!!!
- estava a dormir sossegado no colo da mãe.
O
mal é ruidoso e os seus reinados são espalhafatosos! Mas a maneira de Deus é
mansa, o bem não faz ruído, não barulha. Um rei em pânico a transtornar a sua
cidade e um rei a dormir no sossego discreto do lugar onde começou agora mesmo
a nascer.
Os
magos perceberam estes sinais.
Nós, nem sempre. Confundimo-nos com o barulho e enchemos os
olhos com tamanhos! Surdos por falta de silêncio e aleijados dos olhos, vamos
atrás de quem grita mais convincentemente ou de quem exibe maior influência
para lhes entregarmos os tesouros da nossa vida.
Ouro,
incenso e mirra... E, pelo cheiro, sou transportado para o livro grandioso do
Cântico dos Cânticos: "antes que o
dia desponte e as sombras desapareçam, quero ir ao monte onde há mirra e à
colina onde há incenso", cantava o apaixonado à sua amada (Ct 4, 6)
E
ela responde-lhe que se levantou para ir abrir a porta, "as minhas mãos gotejavam mirra, os meus
dedos eram mirra escorrendo pelos trincos das fechaduras" (5, 5)
Já
antes ela tinha dito que "o meu
amado é para mim como esta bolsinha de mirra que trago entre os meus peitos"
(1, 13).
Entretanto,
neste cântico todo enamorado de alianças, um coro de jovens amigas da Noiva
intervém para cantar esta pergunta: "Que
é isto que sobe lá do deserto como colunas de fumo, com um cheiro tão intenso a
mirra, a incenso e a todos os perfumes dos mercadores?" (3, 6)
Resposta?
Era o rei, que chegava para as núpcias.
CHEIRA-ME
que sem todo este mundo enamorado da escritura com os seus perfumes, não
teremos chave de leitura correta para ler a entrega dos três presentes ao
rei-menino que está ali anunciado enquanto dorme num lugar qualquer de Belém, a
cidade de Salomão...
Depois
de a Noiva abrir a cantiga com a deliciosa frase "Que ele me beije com os beijos da sua boca!" (1, 1), a
primeira promessa do Noivo é "faremos
para ti arrecadas de ouro" (1, 11). Por sua vez, a Noiva confessa que
o seu amado é todo feito de ouro: "a
sua cabeça é de ouro maciço... os seus braços são ceptros de ouro... os seus
pés são ouro fino... e dos seus lábios, que são como lírios, goteja a mirra
cujo perfume se espalha... a sua boca é só doçura, e todo ele é delicioso. Eis
como é o meu amado; assim é aquele que eu amo." (5, 10-16)
Tudo
é beleza e enamoramento neste Cântico dos Cânticos que é uma cantiga de
núpcias.
Conheci
há umas semanas uma jovem guineense que foi batizada na Vigília Pascal de 2014.
Quis-me contar porque se converteu. Uma vez, há cerca de cinco anos, na casa de
um familiar encontrou uma bíblia. Abriu por curiosidade e deu com um livro
pequeno e poético chamado Cântico dos Cânticos. Leu de um fôlego e ficou sem
fôlego. Ficou claro dentro dela esta certeza: um Deus que fala de amor assim,
tem de ser o verdadeiro; uma religião que se permite acreditar num amor assim,
pode dar sentido à vida.
No
Catecumenato veio a descobrir que o grande Cântico dos Cânticos é o Evangelho,
e que a vida de Jesus é toda ela um Poema Nupcial. Brilham os olhos desta
mulher quando conversa destas coisas, porque foi na surpresa de um Deus que
permite falar de amor assim que ela começou a descobrir o Caminho de Jesus.
Tudo
é beleza e enamoramento, estamos talhados para isso! O brilho do ouro, o
perfume do incenso e da mirra, naquela cultura tudo isso fala de sedução, atração,
erotismo, abraço, intimidade. Estamos no Terreiro dos Amores, na Tenda Nupcial,
debaixo do Arco da Aliança.
A Fé Cristã não é outra coisa que aderir a esta loucura de Deus
em desposar-nos.
Pe. Rui Santiago – Plano B
(Janeiro de 2015)
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