C. VIDA COMUNITÁRIA
Os capítulos XI a XV da Didaqué dispõem sobre a vida comunitária, com especial atenção para com a hospitalidade e o discernimento dos verdadeiros pregadores, o culto e a organização.
Capítulo XI
Verdadeiros e falsos pregadores
1 – Se alguém vier até vocês com instruções conforme tudo aquilo que acima é dito, recebei-o.
2 - Mas, se aquele que ensina for perverso e expuser outra doutrina para destruir, não lhe dêem atenção. Contudo, se ensina para estabelecer a justiça e o conhecimento do Senhor, vocês devem acolhê-lo como se fosse o Senhor.
3 - A respeito dos apóstolos e profetas, procedam conforme o princípio (texto grego: dogma) do Evangelho.
4 - Todo o apóstolo que vem até vocês, seja recebido como o Senhor.
5 - Ele não deverá ficar mais que um dia, ou, se necessário, mais outro. Se ele, porém, permanecer três dias é um falso profeta.
6 - Na sua partida, o apóstolo não deve levar nada, a não ser o pão necessário até o lugar em que for parar; se, porém, pedir dinheiro é falso profeta.
7 - E não coloquem à prova nem julguem um profeta que em tudo fala sob inspiração, pois todo pecado será perdoado, mas este pecado não será perdoado (Mt 12,31).
8 - Nem todo aquele que fala inspirado é profeta, a não ser aquele que vive como o Senhor. É assim que vocês reconhecerão o falso e o verdadeiro profeta.
9 - Todo profeta que, sob inspiração, manda preparar a mesa, não deve comer dela; caso contrário é um falso profeta.
10 - Todo profeta que ensina a verdade sem praticá-la é falso profeta.
11 - Mas todo profeta provado (e reconhecido) como verdadeiro, que age pelo mistério terreno da Igreja, não ensinando, porém, a fazer como ele faz, não será julgado por vocês, pois ele será julgado por Deus. Assim também fizeram os antigos profetas.
12 – Se alguém disser, sob inspiração: dá-me dinheiro ou qualquer outra coisa, não o escutem; se, porém, pedir para outros necessitados, então ninguém o julgue.
[NOTA: Segundo a Didaqué, as comunidades da Igreja primitiva, conheciam os apóstolos, os profetas e os mestres. Difícil saber a diferença entre eles, pois parece que a função dos três era anunciar o Evangelho e ensinar. Por outro lado, a insistência na hospitalidade para esses três tipos de pessoas indica talvez que eles exerciam seu ministério de maneira itinerante, visitando as diversas comunidades. Uma das principais dificuldades era distinguir o verdadeira do falso pregador. Para isso, a comunidade chegou a diversos critérios para reconhecer o verdadeiro pregador: ensinar a justiça e o conhecimento do Senhor, falar sob inspiração, viver como o senhor, praticar o que ensina. O falso pregador é aquele que explora a comunidade e não pratica o que ensina. O respeito pelos pregadores é muito grande, pois nesses tempo a comunidade dependia deles para conhecer o Evangelho. De certa forma, podemos dizer que o pregador, por meio de sua palavra e vida, era a personificação viva do Evangelho. Porque os Evangelhos que hoje conhecemos eram escritos que circulavam somente em algumas comunidades.]
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Capítulo XII
Hospitalidade com Discernimento
1 - Todo aquele que vem em nome do Senhor, seja acolhido. Depois examinem para conhecê-lo, pois vocês têm juízo para distinguir a esquerda da direita.
2 - Se o hóspede estiver de passagem, dêem ajuda no que puderem; entretanto, ele não permanecerá com vocês, a não ser por dois dias, ou três, se for necessário.
3 - Se quiser estabelecer-se com vocês, tendo uma profissão, então trabalhe para o seu sustento.
4 - Mas, se ele não tiver profissão, procedam conforme a prudência, para não deixar nenhum cristão ocioso entre vocês.
5 - Se ele não quiser aceitar isso, é um comerciante de Cristo. Tenham cuidado com essa gente.
[NOTA: A comunidade cristã vive o clima da fraternidade e da partilha e, por isso, está sempre aberta para acolher aqueles que necessitam de ajuda. Isso, porém, pode tornar-se ocasião para que aproveitadores explorem a boa vontade da comunidade. O discernimento deve atingir também outras áreas de exploração, para que a comunidade não seja manipulada em favor de interesses alheios ao projeto de Jesus. Não basta ser bom: é preciso ser justo e ter muito bom-senso.]
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Capítulo XIII
Sustentação do profeta
1 - Todo verdadeiro profeta que queira estabelecer-se entre vocês é digno de seu alimento.
2 - Do mesmo modo, também o verdadeiro mestre, como todo operário, é digno de seu alimento.
3 - Por isso, tome os primeiros frutos de todos os produtos da vinha e da eira, dos bois e das ovelhas, e os dê para os profetas, pois eles são os sumos sacerdotes de vocês.
4 – Se, porém, vocês não têm profeta, dêem aos pobres.
5 - Se você fizer pão, tome os primeiros e os dê conforme o preceito.
6 - Do mesmo modo, abrindo uma vasilha de vinho ou de óleo, tome a primeira parte e dê aos profetas.
7 – Tome uma parte do seu dinheiro, da sua roupa e de todas as suas posses, conforme lhe parecer oportuno, e os dê conforme o preceito.
[NOTA: O pregador ou agente de pastoral, que emprega todo o seu tempo na evangelização, fica por isso mesmo dependendo das comunidades para sobreviver. Sua situação equivale à dos pobres. Toda comunidade deve preocupar-se não só em sustentar seus agentes, mas também dar-lhes possibilidade para que, de fato, possam prover às necessidades da evangelização.]
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Capítulo XIV
A Celebração Dominical
1 – Reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer (celebrar a eucaristia), depois de ter confessado os pecados, para que o sacrifício de vocês seja puro.
2 - Aquele que está em discórdia com o outro, não se junte a vocês sem antes ter se reconciliado, a fim de que o sacrifício que vocês oferecem não seja profanado (Cf Mt 5,23-25).
3 - Com efeito, este é o sacrifício de que disse o Senhor: “Em todo o lugar e em todo o tempo se me oferece um sacrifício puro, porque sou um grande rei - diz o Senhor - e o meu nome é admirável entre as nações” (Cf Mal 1,11-14).
[NOTA: A Eucaristia é a celebração da fraternidade. Para que ela não seja profanada no seu significado profundo, exige-se reconciliação, não só no momento do culto, mas na vida concreta. Sem isso, o culto não tem sentido.]
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Capítulo XV
A Vivência Comunitária
1 – Escolham para vocês bispos e diáconos dignos do Senhor, homens dóceis, desprendidos (altruístas), verazes e firmes, pois eles também exercerão entre vocês a liturgia dos profetas e doutores (mestres).
2 - Não os desprezem, porque entre vocês, eles são da mesma dignidade que os profetas e mestres.
[NOTA: A Igreja nascente viu-se logo diante de dois modelos de comunidade. O primeiro era a comunidade palestinense, mais ligada à tradição, e onde estavam presentes os apóstolos e presbíteros. Na Didaqué, as figuras dos apóstolos, profetas e mestres parecem lembrar esse tipo de Igreja, de modelo judaico, onde também encontramos os sacerdotes, profetas e mestres de sabedoria. O outro modelo de Igreja nasceu fora da Palestina e era muito mais voltado a missão e as necessidades que daí surgiram. Esse segundo tipo de Igreja logo teve necessidade de servidores para a comunidade (diáconos) e de supervisores para as diversas comunidades (bispos), escolhidos em clima democrático. Toda comunidade vive na tensão entre a tradição e a missão. Tradição significa ser fiel ao compromisso com o projeto de Jesus, e a missão significa encarnar esse projeto, respondendo aos desafios de cada tempo e lugar. Essa tensão se resolve quando mantemos um olho no Evangelho e o outro na vida.]
3 – Corrijam-se mutuamente, não com ódio, mas com paz, como vocês têm no Evangelho. E ninguém fale com nenhuma pessoa que tenha ofendido o próximo, nem o escute até que ele tenha se arrependido.
[NOTA: O cimento da vida comunitária é a correção mútua, feita com espírito fraterno. Perdoar-se e reconciliar-se mutuamente é o sacramento básico, porque não é bom viver sozinho, como não é fácil viver junto. De tal modo isso é importante que a comunidade deve ser implacável: isolar completamente quem ofendeu o próximo, até que ele aprenda na própria pele a necessidade da reconciliação.]
4 – Façam suas orações, esmolas e todas as ações, da forma que vocês têm no Evangelho de Nosso Senhor.
[NOTA: A vida cristã tem na sua frente o Evangelho e se exprime como oração (ligação com deus), esmola (socorro imediato ao próximo necessitado) e ação (transformação da sociedade pecadora na comunidade fraterna que Deus quer).]
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