10º DOMINGO DO TEMPO COMUM: MARCOS 3,20-35,
“Ele
tem um espírito impuro!”
Se partirmos da leitura do texto do Evangelho, o atual inesperado
ressurgimento das práticas de exorcismo, acompanhadas de um indisfarçável
desejo de amedrontar e dominar, podem nos levar a pensar que o núcleo temático
seja o combate ao diabo. Na verdade, o que temos na narração de Marcos é a
radicalização e a explicitação do conflito entre a prática libertária de Jesus
e o fechamento ideológico das elites religiosas, agarradas à defesa do seu
poder de domínio.
Curando um paralítico e declarando-o sem culpa diante de Deus, calando e
expulsando o espírito que fazia calar um doente, purificando um leproso e
enviando-o aos sacerdotes, curando os doentes que se aproximavam, Jesus havia
desmascarado a escravidão mantida pela ideologia do templo. Vendo que uma grande
multidão aderia a Jesus, os escribas contra-atacam e tentam neutralizar sua
ação desestabilizadora, identificando-o com o protótipo dos inimigos do ser
humano, o diabo.
Precisamos distinguir entre a realidade e a linguagem. A linguagem usada
nessa passagem é apocalíptica, mas a realidade é um conflito político e social.
Como os escribas e doutores da lei se apresentam como representantes de Deus,
veem um espírito diabólico em quem os desmascara. Jesus entra neste jogo de
linguagem e fala do reino de satanás como a acentuação simbólica das
experiências negativas da sociedade judaica. Jesus se defende atacando com as
próprias armas dos adversários!
“Quem blasfemar contra o Espírito Santo
nunca será perdoado!”
Este trecho do Evangelho mostra Jesus cara-a-cara com seus adversários
mais renhidos, numa luta de mitos, ou melhor, num confronto de interpretações
sobre os dramas e aspirações humanas: Jesus e os pobres libertados interpretam
sua ação como obra libertadora e regeneradora de Deus; os escribas e doutores
da lei veem nela a ruína da ordem estabelecida e o espírito diabólico. Não é
por menos: com seu perdão indiscriminado Jesus cancelava os débitos do povo e,
com isso, diminuía os lucros do templo.
É interessante perceber que Jesus entra no jogo linguístico dos seus
opositores para “puxar o tapete” e mostrar a contradição em que estão atolados.
Ironicamente, Jesus diz que se agisse mesmo em nome do diabo, o reino de
satanás estaria dividido e fadado à ruína. Seguindo nessa linguagem, Jesus
compara sua missão com a ação de um ladrão. Se ele quer roubar a casa de uma
pessoa forte deve ser capaz de amarrá-la, deve ser mais poderoso que ela. Jesus
é mais forte que a ideologia do templo!
Mas o clímax da disputa vem a seguir. Jesus afirma que os verdadeiros
pecadores, aqueles que estão irremediavelmente condenados, são os próprios
escribas e doutores da lei, o grupo que controla e dificulta o perdão aos
pobres e doentes, a elite que desqualifica a ação divinamente libertadora de
Jesus acusando-a de diabólica. Esse grupo é réu de um pecado eterno, está
coberto de impureza e envolvido numa cegueira que não permite que veja um palmo
à frente do nariz.
“Quando seus familiares souberam disso,
vieram para detê-lo…”
O confronto que acabamos de comentar está no miolo da narrativa e vem
inserido num quadro de discussão sobre os limites e possibilidades das relações
familiares. Os familiares de Jesus haviam tomado conhecimento daquilo que ele
fazia e dizia, sentiam-se importunados pela multidão que invadia sua casa até
nas sagradas refeições e começaram a temer pela integridade de Jesus e pelo bom
nome da família. Eles têm a nítida impressão de que Jesus enlouqueceu, e
decidem pôr um fim nisso tudo.
O movimento dos familiares de Jesus é interrompido pela discussão com os
escribas, mas é retomada em seguida. A mãe e os irmãos sequer ousam ultrapassar
o círculo dos discípulos e chegar perto de Jesus: mandam chamá-lo. Eles parecem
compartilhar da visão dos escribas, e tentam fazer Jesus interromper ou
desistir da sua missão. Mas o distanciamento é mútuo: a família não aceita a
vocação de Jesus, e ele não a reconhece como sua família. A ruptura parece
radical e total.
Aqui Jesus dá mais um passo na superação do sistema de opressão que
impede a vida e a liberdade do povo. A família patriarcal, centrada na figura
masculina e nos laços de sangue, era um dos eixos da sociedade antiga, um dos
anéis da corrente da dominação. Ela determinava a identidade e a personalidade,
controlava a vocação e facilitava a socialização. Mas era também a célula de
reprodução de uma sociedade excludente e intolerante. Por isso, precisava ser
criticada e superada.
“Quem faz a vontade de Deus, esse é meu
irmão, minha irmã e minha mãe.”
Jesus não se detém na crítica destruidora das instituições, dos modelos
de relacionamento. Ao culto no templo ele antepõe a solidariedade com os que
sofrem. Coloca Deus no lugar da autoridade patriarcal. Substitui a estreiteza
dos laços de sangue pelos vínculos que brotam da condição humana compartilhada.
Propõe uma nova família, caracterizada pela prática da vontade de Deus – que é
sempre uma vontade de vida abundante para todos! – e não pela submissão a um
chefe qualquer.
A célula humana fundamental, aquela que traça a linha que define nossa
identidade, desenvolve nossa vocação e viabiliza nossa socialização, é a
comunidade dos discípulos e discípulas, uma comunidade de iguais ordenada à
construção do Reino de Deus, ou seja, ao resgate do bem viver e conviver aberto
a todas as criaturas. Do ponto de vista do Evangelho de Jesus, todas as demais
instituições e autoridades são transitórias e relativas. Só Deus e o seu Reino
são critérios absolutos.
Sabemos que o mundo é uma grande família e a família é um pequeno
mundo. Sim, mas com todas as contradições inerentes ao mundo. A família é,
muitas vezes, o ecossistema no qual as células da indiferença e da exclusão
encontram ambiente favorável para se multiplicar. Do ponto de vista do
Evangelho, a família não é tudo. Ela deve se rever e refazer em Deus.
“Minha alma aguarda o Senhor mais que as
sentinelas a aurora.”
A ti, Jesus de Nazaré, filho de todas as mães que fazem a vontade de
Deus, irmão de todos os homens e mulheres que se regeneram à luz do Reino,
dirigimos nosso olhar e nossa prece. Ilumina nossa mente e fortalece nossa
vontade, a fim de que tenhamos a coragem de romper com todos os laços que nos
amarram a nós mesmos/as e aos sistemas que oprimem mediante o medo. Abre os
olhos da nossa fé para que vejamos o eterno que se esconde no tempo e se encarna
naquilo que é terno. Ajuda-nos a vencer o paralisante medo de perder o bom nome
pelas calúnias que lançam contra nós. E faz com que nossas comunidades sejam
família de homens e mulheres iguais. Assim seja! Amém!
Texto: Pe.
Itacir Brassiani, msf
fonte: cebi.org.br
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